A tentação da serpente
Uma constatação que pode ser comprovada até em modernas descobertas feitas pela neurociência, é a assertiva de que o nosso cérebro é resultado de uma evolução que remonta à uma fase reptiliana. Como sustenta o psicólogo Daniel Coleman, a evolução do cérebro humano é um processo desenvolvido em milhões de anos, no decorrer dos quais ele evoluiu de baixo para cima, os centros superiores desenvolvendo-se como elaborações das partes inferiores, mais antigas, até resultar no que temos hoje. Quer dizer, de répteis a mamíferos, de mamíferos a primatas, de primatas a humanóides, eis a Àrvore da Vida do ser humano. [1]
Essa mesma visão é encontrada nos textos cabalistas, descrita da seguinte forma: “Quando o homem inferior descende (dentro deste mundo), do mesmo modo que quando entra na forma superior (nele mesmo), ao mesmo tempo isso lhe confere a base de suas almas ou dois espíritos. (Ou seja) o homem está formado por dois lados: tem o direito ou reto e o esquerdo ou sinistro. E pode ser observado de ambos os lados. Em relação ao lado direito, ele tem Nshmtha Qdisha (Neschamotha Qadisha), a sagrada inteligência; enquanto em relação ao lado esquerdo, ele tem NPShChIH, (Nephesh Chia), a alma animal”.[2]
Entende-se assim a visão bíblica da tentação da Serpente como a evolução do cérebro humano da sua conformação reptiliana até o passo fatal da reflexão, que segundo Teilhard de Chardin, é um processo de acumulação de propriedades neurais, que ocorreu por concentração energética no cérebro humano durante alguns milhares de anos. Essa concentração enérgética foi também a responsável pelo nascimento do Eu, ou seja a noção de Ser, que fez o homem tornar-se diferente de todas demais espécies animais. É a essa noção de Ser que nós podemos chamar de Ego.
Tikun e Schekináh
Por isso diz a Torá que Deus, após expulsar o casal humano do Éden colocou no seu portão um querubim com uma espada flamejante, para evitar que eles voltassem sem cumprir um longo processo de recuperação da Luz que foi obstruída quando deram ouvidos ao seu Ego. Pois foi exatamente isso que o Ego lhe disse: “certamente não morrereis: Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como deuses, serão conhecedores do bem e do mal.”[3]
A doutrina da Cabalá nos ensina que o Adão terrestre foi refletido na terra a partir do seu modelo celeste Adão Kadmon, para cumprir uma tarefa messiânica. Essa tarefa era a de resgatar as “centelhas” da Luz de Deus que se espalharam pelo vazio cósmico no momento em Ele se manifestou no plano físico, (ou as centelhas da sua energia que se espalharam em consequência do Big-Bang e se perderam no âmago da matéria formada por elas).
Se Adão houvesse cumprido sua tarefa, a Criação teria terminado no Sabbath (o Sábado), consumada na união do masculino com o feminino (a união de Adão e Eva). O paraíso seria o prêmio final dessa tarefa, não só para o casal humano, mas para toda a sua descendência. Mas Adão fracassou e a história humana começa, então, com a retirada da vestimenta etérea que cobria o corpo do casal adâmico.
Assim se explica a estranha informação constante de Gênesis, 3;21; “E o Eterno Deus fez para o homem e para sua mulher túnicas de pele e os fez vestir.” Isto é, deu vestimentas de ser humano aos seres que antes, eram espirituais. O pecado de Adão fez com que a Schekináh (a Luz de Deus, presença divina no universo) fosse espalhada pelo mundo, através da descendência humana do casal. Dessa forma, a missão do homem Adão, como ser humano, passou a ser a tarefa de reunir, de novo, as centelhas dessa Luz dispersa, o que se dará quando se concretizar o processo da Tikun Olan, ou seja, a restauração da ordem que foi quebrada com a queda do homem.
Essa restauração (Tikun) será conduzida pelo Messias, através de um processo do qual todos participaremos. Assim, a redenção de todas as almas passou a ser uma consequência dos nossos atos. O Messias é visto aqui como um “professor”, um guia que nos conduzirá nesse processo.
Essa nossa assertiva é inspirada na visão do historiador Gershom Scholem ao comentar esse tema. Diz ele que não devemos nos esquecer que essa concepção da doutrina cabalista, que encampa várias ideias gnósticas, reflete a própria vida de Israel enquanto nação, com sua história de ascensões e quedas, e o exílio que marcou a vida do povo judeu. [3]
Nesse sentido, diz esse autor, “Israel é a correspondente sócio-política da Schekináh e sua dispersão histórica pelo mundo é o símbolo do caos, o qual só será ordenado com a realização da Tikun. Por isso, escreve ele, “no decurso do seu exílio, Israel deve ir a toda parte, a cada um dos cantos do mundo, pois em todo lugar há uma centelha da Schekináh á espera de ser descoberta, apanhada e restaurada por um ato religioso.”
É nesse sentido que a própria nação de Israel é considerada como o “Messias” realizador desse processo.[4]
Essa é uma interpretação que a doutrina cabalista faz da metáfora bíblica que fala da expulsão do casal humano do paraíso? Simplesmente que ele deixou que seu Ego se tornasse dominante. O conhecimento do bem e do mal, aqui entendido como a Luz do Criador, é o egoísmo falando mais alto e sugerindo que ao reter essa Luz só para si, o casal humano se tornaria igual ao Criador.
Na Cabalá o egocentrismo é definido como Desejo de Receber. Esse desejo é inerente ao ser humano e a todas as criaturas do universo. Faz parte do fenômeno da vida. O outro polo desse desejo é o de Desejo de Compartilhar. Esse desejo também faz parte da estrrutura neurológica do ser humano, mas ele não flui tão naturalmente quando o de Receber. Enquanto o de Receber é uma característica de todo organismo que existe no mundo, o de Compartilhar é algo que se desenvolve à medida que a experiência existencial se consolida e nós sentimos a necessidade de retransmitir a energia que recebemos do Criador. O melhor exemplo do :Desejo de Compartilhar é a maternidade e a paternidade. A transmissão da vida é um desejo que já vem inscrito no nosso próprio DNA. Podemos até renunciar a ele em razão do nosso direito de escolha, mas isso decorre pura e simplesmente do nosso livre arbítrio.
O Desejo de Compartilhar é imprescindível para o nosso desenvolvimento espiritual. Se ele não for exercido, a Luz que recebemos do Criador é bloqueada e a energia não flui. Esgota-se no próprio indivíduo e extingue-se com ele. O espírito de uma pessoa assim, após a morte, continua aderido à forma material que o hospedou. Porque espírito é energia que a própria vida psíquica do indivíduo produz durante a sua existência. Enquanto não encontra um canal para fluir, essa energia continua procurando organismos para se hospedar. Essa é a razão dos fenômenos mediúnicos e espirituais relatados pela prática do espiritismo.
O Desejo de Receber, na nossa vida diária, é um processo orgânico e psíquico que se constrói com muitas páginas. Podemos chamá-la de dinheiro, poder, reconhecimento, fama, prazer sexual, paz de espírito etc. Mas todas essas páginas tem só um nome: Ego. Esse Desejo pode atuar como uma droga. Quem a toma e faz dela um prazer constante, vicia. E todos nós sabemos o quanto é difícil dominar um vício depois que ele se instala em nosso sistema neurológico.
Esse desejo está inserto na própria vida e nós não temos como descartá-lo. Só podemos conviver com ele e controlá-lo, para que ele não torne a nossa alma demasiadamente cascuda, impedindo-a de refletir a Luz Infinita do Criador. Isso porque nós temos o livre arbítrio de escolher entre o Desejo egoísta de reter a Luz só para nós mesmos e o Desejo de compartilhá-la, dando-lhe livre fluxo para que ela se espalhe pelo mundo como Deus faz com a Dele.
Mitigar o Desejo de Receber em proveito do Desejo de Compartilhar não significa renunciar a ele. Pelo contrário, esse desejo deve ser ativo e constante, crescente e vigoroso. Mas o de Compartilhar precisa ter medidas de entusiasmo ainda mais vigorosas. É que a Luz Infinita do Criador tem essa propriedade: quanto mais se a compartilha mais ela energiza a nossa alma, pois ela é como um dínamo que se recarrega na medida em que os equipamentos que rodam com sua energia são usados.
Assim, o Desejo de Receber deve ser exercido com vigor e muita vontade. É uma ambição boa. Toda ambição é boa, e só se torna prejudicial para a nossa alma quando fazemos dela um objetivo em si mesmo, ou seja, um exercício de gratificação do Ego. Por isso é preciso tomar um certo cuidado com ele. Ele deve alimentar o nosso Ego, mas não podemos deixar que ele se torne o próprio Ego. Isso porque o prazer que ele produz tem efeitos transitórios que se esgotam no momento da sua realização. Quer dizer, quando ansiamos por obter alguma coisa que muito desejamos, o pico do prazer ocorre quando o desejo se realiza. Mas logo depois o sentimento vai se arrefecendo aos poucos até a nossa neurologia não o registrar mais. Por isso se diz que prazer maior do que receber alguma coisa é o de conquistá-la.
Essa é a razão que muitas vezes levam pessoas bem sucedidas, que chegam ao auge da riqueza ou da fama, perderem a alegria de viver. Algumas tentam reencontrá-lo nas drogas, no álcool, no desregramento sexual e outras formas transitórias de prazer que acabam provocando mais dor e sofrimento. Tudo isso é decorrente do esgotamento do Desejo de Receber pela própria saciedade que ele provoca.
Já o Desejo de Compartilhar nunca se esgota em si mesmo. Ele flui eternamente como um rio, simplesmente porque ele é diferente do mero cumprimento de uma obrigação. Ele é uma escolha que fazemos e ao fazê-la nos tornamos um canal pelo qual a Luz Infinita do Criador flui livremente. O resultado todos sabemos: plenitude espiritual, felicidade completa, prazer e alegria de viver. Exemplo disso são as pessoas que deixam grande legado social e espiritual para a humanidade, como Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Alexander Fleming, Helen Keller, Bernard Kouchner, Melvin Jones, Francisco de Assis, Alan Kardec, Mahatma Gandhi e outros, que a História registra como benfeitores da humanidade.
Outro exemplo: trabalhar duro para alimentar a família é uma ótima forma de compartilhar, mas não é suficiente e nem a mais eficiente para fazer circular a Energia do Criador. É que esta é uma obrigação que se assume pelo simples fato de termos procriado. Não é anseio de uma alma que fez a opção de servir de Parceiro do Criador, transmitindo a sua Energia.
Transmitir a vida que se recebe é uma função biológica. Todo organismo a possui. Ser honesto também não é uma escolha; é uma obrigação. As chamadas virtudes teologais - caridade, alegria, paz, paciência, bondade, longanimidade, benignidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência, castidade – estão mais para a categoria de um código de moral do que para o puro Desejo de Compartilhar. São parte de um catálogo de obrigações que assumimos por conta do fato de estarmos vivos. Já o exercício do Desejo de compartilhar é uma escolha que fazemos em função do nosso livre arbítrio. Não somos obrigados a fazê-la, mas se não a fizermos, a consequência é a condenação da nossa alma a um longo e doloroso processo cármico.
Essa é uma sensível diferença entre as doutrinas religiosas do Ocidente e os fundamentos mais caros da Cabalá e da Maçonaria. O homem realmente virtuoso não se preocupa com filantropia. Ele compartilha a sua Luz. Não doa apenas para satisfazer o desejo egocêntrico de obter reconhecimento. Ele irradia sua Luz sem perguntar para onde vão os seus raios e quem dela se beneficia.
Como se diz na Maçonaria, ele levanta templos à virtude e cava masmorras ao vício. A filantropia pode fazer parte das suas ações, mas não é o objetivo fundamental delas. O cerne da prática maçônica está na esperança de uma iluminação espiritual, que se atinge quando o Irmão galga todos os degraus da Escada de Jacó e contempla a Estrela Flamejante. E cumpre, dessa forma, o preceito ensinado por Jesus: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e todas as demais coisas vos serão acrescentadas.” Por isso a estrutura da Loja maçônica é composta como uma imitação da Árvore da Vida da Cabalá. Os irmãos que entenderem de fato essa alegoria e a proposta filosófica que a fundamenta poderão tirar mais proveito das sua presença em Loja do que a sua simples participação nos rituais e "copos dágua".
[1] Goleman, Daniel- Inteligência Emocional, 5º Ed. Ed. Objetiva, 1995. Na imagem, ramo da Árvore da Vida genealógica, no qual se vê o primata (ancestral do homem), como uma derivação reptiliana. Desenho de Luciene Cuénot - fonte: O Fenômeno Humano pg.137.
[2] Knorr Von Rosenroth- A Kabballah Revelada, Madras, 2011- pg. 11.
[3] Genesis, 3:7
[4] Cabalá e Maçonaria- Ed. Madras, São Paulo 2019