A alma e o espírito
“Sabei que vossas almas são imortais”, disse Shimon Ben Yochai. “A alma parte somente quando o Anjo da Morte tomou posse do corpo. E uma vez mais a alma toma a forma que vestia antes de vir ao mundo. Tampouco pode a alma experimentar uma real alegria até que se sinta vestindo de novo sua própria forma celeste.”[1]
Nossas almas, segundo a otica cabalística, são centelhas de energia que o Criador espalhou no mundo para servir de sementes para a Criação. Essas centelhas fornecem o núcleo de todas as coisas animadas e inanimadas que existem no universo. A potência energética existente em cada uma determina a qualidade da matéria onde ela se hospeda. Os organismos que recebem o fenômeno da vida são os que capturam as centelhas mais energizadas por conta do processo evolutivo que experimentaram, e dentro do complexo da vida, o ser humano é o que detém a melhor “qualia” nesse sentido.
Essa nossa intuição é inspirada nas especulações de Teilhard de Chardin, considerado um dos maiores pensadores do século vinte. Em outra obra de nossa autoria nós fizemos uma síntese do pensamento desse grande filósofo, que justamente por ter intuído a evolução da vida num rumo semelhante à que a Cabalá parece adotar, foi muito hostilizado pela sua própria confissão religiosa, a Igreja Católica Romana. Reproduzimos aqui a síntese feita para aquela obra, que nos parece bem apropriada para o tema em questão.
“Teilhard vê o mundo ordenado numa série de grandezas distribuídas ao longo de uma escala, que é o eixo do espaço-tempo. Essas grandezas se distribuem em duas direções: uma, que é aquela que vai do ínfimo para o imenso, é representada por um universo em constante expansão, formando os planetas, os astros, as galáxias, as grandes massas estelares; essa expansão originou-se num ponto ínfimo de máxima densidade energética, que justamente por hospedar essa inconcebível concentração de energia, um dia vazou para além de si mesma. Esse “vazamento” (acreditamos) pode ser identificado na grande explosão que os cientistas chamam de Big-Bang. A outra direção é aquela que parte do imenso para o ínfimo, representada pela tendência da energia presente nas massas físicas, que é a de enrolar-se sobre si mesma, criando camadas energéticas cada vez mais densas, concentradas em pontos cada vez menores. Essa é a direção que o espírito humano percorre. E assim é em virtude do fenômeno da complexificação cada vez maior dos processos organizacionais, um dos quais, o mais complexo, é o pensamento humano.
Na escala do imenso, que são as grandezas cósmicas, domina a relatividade. As massas estelares se formam por dispersão, partindo de um ínfimo inicial. Por isso, a organização dos corpos materiais é simples. Neles são realizadas combinações atômicas primárias e as realidades materiais vão surgindo dessas combinações, povoando o nada cósmico.
Na escala do ínfimo, porém, ocorre um processo inverso. Nela domina o quanta. Aqui ocorre uma concentração da energia, uma interiorização para o núcleo dos elementos e dessa concentração resultam estruturas cada vez mais complexas, quanto mais a energia se concentra sobre si mesma. Foi essa concentração energética em uma determinada molécula, que produziu, um dia, o primeiro organismo vivo, o qual evoluiu até desembocar no homem.[2] .
Ou seja, o surgimento da vida é consequência de um fenômeno semelhante ao Tzim Tzum, conceito cabalista que está na origem do universo físico. Ela é o resultado da energia concentrada sobre si mesma, diz Chardin. E se a alma é uma centelha de energia emitida pelo Criador, como diz a Cabalá, então é lícito supor que todas as vidas possuem uma alma e que estas se submetem a um padrão qualitativo que está vinculado à concentração energética que elas conseguem reunir sobre o seu núcleo.
Como as almas se distinguem e se adequam aos organismos aos quais se aderem? Chardin nos oferece a seguinte intuição: “ O ser, quanto mais complexo é em sua estrutura, mais consciente se torna em sua interioridade. Dessa forma, a evolução passa a ser um processo de convergência da energia presente na matéria, dirigida para o interior dela mesma. A consciência humana nasceu, dessa forma, como um fenômeno energético que proporcionou a uma espécie em particular a condição de diferenciar-se e assumir, entre todas as espécies criadas pela natureza, o próprio rumo no processo evolutivo. A evolução, que até o surgi -
mento do homem, era um processo controlado “por fora”, através de leis exclusivamente naturais, a partir do homem passou a ser controlado “por dentro”, tornando-se auto evolução.[3]
Portanto, tanto a alma quando o espírito são fenômes energéticos que se situam, cada um em uma etapa de evolução da vida. A alma está na origem da vida; ela é a causa dela. E o espírito é um reflexo da vida que ela experimenta e desenvolve.
Na visão cabalista o espírito distingue-se da alma pela sua essência e origem. A alma tem sua origem no próprio Criador enquanto o espírito é um produto da energia que a alma concentra no organismo que a hospeda.
A vida do espírito
Espírito, portanto, na ótica cabalista é uma função da alma na sua vida terrestre. É uma derivação da Energia que a alma prodigaliza ao ser humano e que este utiliza em suas ações, no exercício do seu livre arbítrio. A Cabalá identifica três componentes nesse processo: Nefesh, que é o espírito vital, ou seja, o fluído vital que permanece junto ao corpo até a sua decomposição; Ruach, a parte intelectual, que toma a forma do corpo e se incorpora ao mundo espiritual como energia em suspensão; Neshama, a centelha de Luz divina que se reintegra a Deus depois de cumprida a sua missão na terra. Ruach e Nefesh constituem o que chamamos de espirito, propriamente dito. São reflexos da mente e do corpo, alimentados pela energia despendida na vida, em pensamentos e ações. Por serem energia podem ser capturados pela mente humana, o que, em nossa intuição, justificam os fenômenos espirituais. Por isso o Zhoar diz que somente quando a Neshama, a centelha luminosa que é a nossa alma, retorna a Deus, a Nefesh descansa e Ruach entra no Paraíso.
A visão cabalística é mística e comporta uma grande dose de imaginação e poesia. No entanto ela nos parece interessante e bastante consentânea com a intuição de Teilhard de Chardin e com modernas concepções urdidas pelos estudiosos da mecânica quântica.
Para Chardin, por exemplo, o espírito é um resultado da atividade psíquica produzida pelo homem. Ele provém da centração de energia sobre uma parte do cérebro, gerando uma “mente” que, por sua vez, também emite energia em forma de pensamentos. Eis como ele entende esse fenômeno e como ele se materializa numa fórmula que dá sentido e orientação à própria atividade humana sobre a terra: “O universo pode ser visto como o conjunto total das realidades espalhadas ao longo da reta espaço-tempo. Com a emissão dos pensamentos por parte do homem, uma nova camada de elementos passou a envolver a terra: a noosfera. A noosfera pode ser entendida como a centralização da totalidade energética despendida pelos homens, em todos os tempos, no ato de pensar. É o conjunto das reflexões humanas que se concentram sobre si mesmas, criando uma espécie de “atmosfera espiritual”. É esse celeiro energético de pensamentos condensados que fornece o estofo para as nossas atividades psíquicas: Ele é o chamado inconsciente coletivo da humanidade, na visão junguiana. Partindo dessa idéia, o processo de aculturação da humanidade passa a ser a jornada do seu espírito coletivo, em busca de uma união que se consuma num ponto único do tempo e do espaço, que Teilhard chama de Ponto Ômega. Visto dessa forma, a evolução pode ser representada por um cone onde a base representa a totalidade das realidades materiais e o seu vértice a totalidade das suas manifestações energéticas, concentradas em experiências de vida e convertidas em espírito. Assim, todas as manifestações do espírito humano são etapas de um processo de evolução cósmica, onde está presente, em maior ou menor grau, a energia na sua forma material, ou já convertida em espírito.”[4]
Gilgou- o processo da reencarnação
A alma, como vimos, é neutra. Ela, por ser uma centelha de Energia expelida pelo Criador em forma de Luz, não tem identidade nem se altera em sua essência pelas atividades do ser humano em suas escolhas. Ela é pura Energia que se movimenta de um organismo a outro para dar-lhes a vida.
Já o espírito é individual. Ele tem uma personalidade, que se refere à uma pessoa determinada. Por isso dizemos “espírito de fulano”, “espírito de sicrano” etc. O espírito é uma decorrência da própria atuação do ser humano sobre a terra. Ele se forma através da nossa atividade psíquica. Ele é a totalidade das emanações psíquicas emitidas pelo indivíduo na sua vida, e que, por também serem pura energia, incorporam-se ao acervo energético do universo, como diz Teilhard de Chardin com o seu conceito de Noosfera.
Essa é a razão de sentirmos que o espírito sobrevive à morte do organismo. Sem dúvida ele sobrevive porque é reflexo da personalidade do que fomos em vida. Por ser energia em suspensão na atmosfera ele pode ser conectado por mentes que desenvolveram sensibilidade capaz de conectar-se com essa dimensão energética.
Por isso pensamos que espíritos não “encarnam” em outras pessoas para viver outras vidas. Eles são energia derivada e não energia original, vindas da Luz Infinita do Criador. A reencarnação é privilégio da alma. Ela é que reencarna e não o espírito. O que os médiuns captam em suas experiências mediúnicas são as energias suspensas na noosfera e que podem ser identificadas com personalidades particulares de indivíduos já desencarnados. Isso nos parece bem plausível de acontecer, dada às propriedades da energia, que têm sido reveladas pela mecânica quântica. Essa concepção poderia justificar uma das mais importantes reivindicações do espiritismo, que é a capacidade que o médium tem de comunicar-se com entidades desencarnadas.
O fenômeno espiritual conhecido como Gilgou, conceito cabalista que se refere à doutrina da reencarnação é que nos leva a fazer essa interpretação. Esse conceito diz que um espírito pode voltar à terra para ajudar um pai, um filho, um parente, um marido ou esposa, a reencontrar o caminho certo, do qual ele, ou ela se desviou. Isso quer dizer: uma pessoa, por fazer parte de um mesmo grupo cultural, inclusive por laços de sangue, pode, mais facilmente capturar traços de personalidade de um parente morto para ajudá-lo a mudar a sua própria personalidade em proveito da salvação da sua alma.
Em PNL essa possibilidade é referida como a captura de um “mentor”, ou seja, de um “símbolo” de poder ou sabedoria que possa nos servir de âncora para eliciar, em nosso sistema neurológico, um estado de motivação e confiança que nos capacite a alcançar o sucesso em nossas escolhas. Esse “mentor” pode ser pessoas reais ou fictícias, objetos ou ideias que possam ser “personificadas” para nos servir de orientadores. O exercício de captura de um “mentor” é um dos mais eficientes na prática dessa técnica.
Quanto á ideia cabalística do Gilgou, ela nos parece lógica. Nesse sentido ousamos mesmo pensar que essa possibilidade pode ser estendida não só aos membros de um mesmo grupo cultural, ou família, mas também a todas as pessoas, por entendermos que a humanidade, na sua totalidade, constitui uma família. Assim, o fenômeno do Gilgou não estaria circunscrito apenas a determinados grupos com identidades culturais vinculadas. Essa talvez, seja a grande intuição que justifica a verdade do espiritismo e explica os diversos fenômenos que essa doutrina já expôs ao mundo.
A manifestação de um espírito, nesse sentido, não é uma encarnação, mas sim uma influência psíquica oriunda de uma consciência desencarnada. Evidentemente ela é mais passível de ocorrência dentro de grupos com vinculações culturais, orgânicas e psíquicas muito próximas. E também nos parece lógico que essa intuição tenha sido mais experimentada entre os judeus, cuja identidade cultural lhe dá uma verdadeira característica de “fratria”.[5]
( do livro a Estrela Flamejante- no prelo para publicação).
[1] Zhoar, citado, pg, 213
[2] Conhecendo a Arte Real- Madras, São Paulo, 2010
[3] Na imagem, o padre Pierre Teilhard de Chardin. Fonte: O Fenômeno Humano.
[4] Conhecendo a Arte Real, op citado.pg 109
[5] Frátria é a palavra que designa, na antiga Grécia, um grupo de pessoas que apresenta características similares, que se une pelo sangue, pelos costumes e pelas crenças religiosas. Significa, na verdade, um clã, que envolve não somente as pessoas ligadas pelo sangue, mas todos os componentes de uma determinada comunidade, cujos traços culturais são idênticos, principalmente em relação à religião.