A MULHER NA TRADIÇÃO HERMÉTICA
A conexão da tradição hermética e o elemento feminino está implícita no pressuposto segundo o qual a Arte dos Filhos de Hermes ( a alquimia) teria sido ensinada aos homens pelos chamados “anjos caídos”, que desceram sobre o Monte Hermon e se amasiaram com as filhas dos homens, gerando os gigantes que viveram antes do Dilúvio, como se diz em Gênesis 6:4. Esses gigantes eram os “nefilins”, termo que a literatura bíblica usa para se reefrir à raça de titãs que a tradição grega identificava com heróis e semideuses que compunham a variadíssima fauna de seres sobrenaturais que existia na mitologia helênica.
Como diz Hermes Trismegisto, “os livros antigos e divinos ensinam que certos anjos se incendiaram de desejo pelas mulheres. Desceram à terra e se amasiaram com elas. E também ensinaram à humanidade todas as operações da natureza. Foram eles que compuseram as obras herméticas que conhecemos e é deles que provém a tradição primordial dessa Arte.[1]
A conexão entre a alquimia e o simbolismo da árvore e o dragão ( que se conecta com o mito de Adão e Eva), aparece na Bíblia no episódio em que ela se refere à Árvore do Conhecimento e a Árvore da Vida. Segundo a crônica bíblica, o casal humano “come” do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e em razão disso sofre uma dupla penalidade: perde a sua condição angélica e é expulso do Eden, para que não coma o fruto da Árvore da Vida e se torne imortal.
A metáfora inserta nesse episódio é clara. Ao adquirir o conhecimento do bem e do mal, o ser humano adquiriu um status semelhante aos deuses, no sentido intelectual do termo. Significa que antes desse episódio ele era um ser inocente, e não tinha consciência de si mesmo como indivíduo com poder de fazer o mal e o bem. Ao comer do fruto proibido, ele adquire um “ego”, ou seja, uma capacidade de refletir e tomar consciência da sua própria realidade como ser humano. Como diz Teilhard de Chardin, a ingestão do fruto proibido pode ser chamado de “passo da reflexão”, momento sublime em que a energia que está no estofo do universo se concentra em um órgão do corpo humano (o seu cérebro) e a ele adiciona uma camada neural capaz de processar pensamentos, sentimentos e refletir sobre eles.
Na metáfora bíblica releva-se claramente a conexão apontada pela tradição hermética que atribui à arvore e ao dragão um papel fundamental nesse processo, e ele está vinculado fundamentalmente ao principio feminino. São duas árvores que simbolizam o processo de divinização que poderia elevar o ser humano ao patamar dos deuses. Uma, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e a outra a Árvore da Vida. A árvore, nesse caso, é identificada com a própria condição feminina, pois é do elemento feminino que vem o fruto. Quem inspira a mulher a cometer o ato de comer o fruto é o Dragão, que a Bíblia figura na serpente, ser abjeto e rastejante que guarda as raízes da árvore, como figurado na tradição hermética.
Enxerga-se, nesse mito, o sentido metafísico que a tradição hermética confere à mulher como a “fonte da vida”, e justifica a proposição encontrada em vários textos alquímicos que dizem ser a alquimia um “trabalho de mulher e um brinquedo de criança.”
Outra também, não é razão de a mulher ter sido tão identificada com as artes mágicas na cultura medieval, sendo muitas delas taxadas de bruxas pelo simples fato de hospedar conhecimentos e práticas mal compreendidas pelos líderes religiosos da época. A misoginia era tanta que muitas delas foram parar nas fogueiras da Inquisição.
O poder de criação é um poder feminino por excelência. O macho planta a semente, mas é a fêmea que a matura e faz germinar. Daí o fato de ela ser comparada à natureza na tradição hermética, e por analogia, à arvore, de onde brota o fruto. Ela simboliza, pois o poder criador da natureza. O poder de criar é o verdadeiro fator que confere ao ser humano aos deuses. E ele foi conferido ao através da mulher. Por isso diz também a Bíblia: "com dor darás nascimento aos seus filhos."
Na tradição hermética, a mulher é a Terra, matéria prima da criação, na qual a energia se hospeda em forças dispersas antes de ser organizada em sistemas. Por isso ela é referida como Noite, Abismo, Árvore-Mulher, Matriz, Mãe, Senhora dos Filósofos etc. É o mesmo sentido que a Cabala lhe dá, ao referir-se ao Princípio Feminino como responsável pelo surgimento da Luz no mundo, que os cabalistas chamm de Scheckináh, ou seja a presença de Deus no mundo, em forma de luz, dando nascimento a todas as realidades universais.
Um interessante paralelo das metáforas herméticas, que aparece na Bíblia é a dicção encontrada em Genêsis, 1:2, quando diz que o “Espírito de Deus pairava sobre as águas” e que a Terra era sem forma e vazia. Na tradição hermética, a mulher é comparada à essas águas primordiais sobre as quais o Espirito Divino pairava, e na qual inoculou a semente que deu existência ao universo. A idéia que aqui se faz conecta-se com o fato de o útero feminino, no qual se formata o ser humano é como o vazio cósmico primordial no qual o Criador inocula a Luz, veículo no qual Ele distribui a energia que dá forma ao universo. É o próprio princípio feminino, ao qual também se refere o Taoísmo nos inspirados versos de Lao Tsé: “Conhecendo o masculino e conservando-se o feminino, a pessoa se torna uma corrente universal. Tornando-se uma corrente univeral, não se sente separada da virtude eterna.[2]
Quer dizer: nela ( a mulher), “húmido radical, Senhora dos Filósofos” como a ela se refere a Tradição Hermética, realiza-se o mistério de toda criação. Nela se encontra o “Mercúrio dos Filósofos”, princípio gerador de todas as obras.
(continua)
[1] Apuleio- Metamorfoses, XI, 21
[2] Tao Te King, verso 28