A TRADIÇÃO HERMÉTICA
O elemento feminino
O dom de criação é um poder feminino. O homem planta a semente, mas é mulher que a matura e a faz germinar. Daí o fato de ela ser comparada à natureza na tradição hermética, e por analogia, à árvore que produz o fruto.
Em todos os casos ela simboliza o poder criador da natureza. Transferido ao ser humano, esse poder, acrescido do elemento consciência, é o verdadeiro fator que o iguala aos deuses. E para que esse processo de divinização do ser humano não fosse completado, no dizer da Bíblia, a ele foi interdito o acesso à “Arvore da Vida”, porque, ao comer do seu fruto, ele se tornaria também imortal, e isso o Deus hipostasiado não poderia permitir.
Uma das razões que fizeram a inteligência religiosa medieval condenar a alquimia foi exatamente a ideia de que o alquimista procurava “conhecer” a natureza para dela extrair os seus segredos. E com isso adquirir um poder supra terreno que a religião não conseguia outorgar aos seus líderes. A obtenção desse poder faria do alquimista uma espécie de Deus sobre a terra, com conhecimento sobre o bem e o mal, além de dotá-lo de uma riqueza incomparável através da fabricação de ouro em seu laboratório, e pior que isso, torná-lo-ia quase imortal através da produção do elixir da longa vida, um sub produto da arte hermética.
Daí o fato de a alquimia ser considerada por muitos líderes religiosos uma espécie de religião muito perigosa. E a perseguição feita aos Filhos de Hermes está inserida nesse contexto, da mesma forma que se perseguiam as mulheres que demonstravam alguma aptidão para práticas espiritualistas diferentes daquelas que a Igreja permitia. Bruxas, magos e supostas feiticeiras alimentaram as fogueiras da Inquisição durante toda a Idade Média.
As duas naturezas humanas
O pensamento que anima a prática alquímica é o de que no homem convivem duas naturezas: a humana e a divina. Esse é um pensamento que tem suas raízes nos próprios textos bíblicos, onde se confere ao casal humano um status angélico antes da queda e uma natureza humana depois dela. Os segredos da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e da Árvore da Vida estão insertos nesse contexto. Como diz o Corpus Herméticum, “o homem não perde a sua dignidade por possuir uma parte mortal.” Pelo contrário, a mortalidade aumenta as suas possibilidades e o seu poder, pois lhe confere uma dupla função no universo da vida: a de preservá-la através da procriação e transcendê-la para um plano divino através da sua produção espiritual, na qual se insere toda a atividade mental da humanidade, em todos os tempos.
Isso é o que faz o homem igualar-se aos deuses. Pois ele, ao mesmo tempo em que desce à terra e formata um espírito que se agrega ao quantum energético que dá vida e alimento à atividade mental da humanidade, também sobe ao céu com esse poder que lhe foi dado.
Daí o temor dos deuses de que o homem adquirisse também o dom da imortalidade, pois com isso ele poderia se tornar mais poderoso do que eles. Todas as lendas gregas estão impregnadas dessa tradição, patente nas famosas lutas entre os Titãs ( seres humanos com poderes sobrenaturais) e os deuses, sendo que, muitas vezes, eram os Titãs os vencedores.
A Bíblia, com o episódio da queda do homem, que lhe foi a atribuída por ter comido o fruto do conhecimento do bem e do mal, não difere dessa tradição, assente na maioria das crenças antigas, de que o homem conquistou um status semelhante ao dos deuses a partir do momento em que passou a refletir. Com a capacidade de reflexão ele passou a ter conhecimento do bem e do mal. Na lenda grega de Prometeu, é essa mesma metáfora que está sendo usada, quando se diz que o Titã Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu de presente aos homens. Pois o fogo, na tradição dos antigos gregos, era o símbolo da sabedoria que construía civilizações.
A nova raça dos “Filhos de Hermes”
Daí vem a pretensão dos Filhos de Hermes (os alquimistas) de constituir uma “nova raça” sobre a terra através da prática da Ars Magna, a Arte Real por excelência, ou seja, a alquimia. Essa pretensão foi claramente manifestada no documento que deu início à suposta Fraternidade da Rosa-Cruz, onde textualmente se diz que “o único sábio e misericordioso Deus, nestes dias derramou tão profusamente Sua misericórdia e Sua bondade para a humanidade, por meio do que, verdadeiramente atingimos mais e mais o conhecimento perfeito de seu Filho Jesus Cristo e da Natureza, de forma a podermos com justiça nos vangloriar desta época venturosa na qual não somente a nós nos foi revelada a metade do mundo que era até agora desconhecida e ocultada. Mas Ele também tornou manifestadas para nós muitas maravilhosas obras e criaturas da Natureza nunca até aqui vistas e, além disso, elevou os homens, imbuídos de grande sabedoria, os quais poderiam parcialmente renovar e converter todas as artes à perfeição (nesta nossa maculada e imperfeita época), de forma que o homem finalmente pudesse por meio disto compreender sua própria nobreza e valor, e compreender por que é chamado Microcosmus e até onde seu conhecimento da Natureza se entende.”
Quer dizer: Deus teria dado aos membros da Rosa-Cruz uma soma de conhecimentos que os elevariam a uma categoria superior, apta para reformar o mundo e iniciar uma nova era para a humanidade.
Uma importante constatação logo nos vem à mente ao verificar que os autores do Manifesto Fama e Fraternidade, que deu início à tradição da Rosa-Cruz eram todos alemães. E a história posterior da Alemanha tem muita vinculação com essas ideias, a se considerar todas os acontecimentos históricos que se seguiram e desembocaram na experiência nazista, de triste memória para toda a humanidade.
De se ver que na raiz de todas as teorias de poder que conformam a vida da humanidade está sempre esse anelo do homem pela aquisição de um status superior aos demais, seja pela guerra, ou pelo conhecimento, ou ainda pelo exercício de uma espiritualidade que lhe confira um sentimento de intimidade com os deuses.
É nessa conformação elitista de uma descendência divina que se insere também o conceito cabalista do Homem Universal- o Adam Kadmon- Adamas, o “homem lá de cima” que serviu de modelo para o “homem cá de baixo”, das lendas sumerianas e gregas, convenientemente adaptadas pelos cronistas bíblicos para sedimentar a sua narrativa criacionista.
Todas essas considerações feitas sobre a prática da alquimia são importantes para deslindarmos alguns fundamentos da Maçonaria, que é o objeto deste estudo.
No próximo artigo estaremos comentando um pouco mais sobre esse assunto.