A DIMENSÃO DA LUZ INFINITA
A Cabalá chama o Criador de “Ele”. Ele, o Ain, que gera o Ain Soph – o espaço sem fim – que projeta Ain Soph Aur - a Luz Infinita - para se manifestar no mundo como matéria prima da Criação, é uma fonte inesgotável de Energia que não tem início nem fim. Como diz o rabino Michael Berg, “O Criador é uma força infinita de energia positiva, sem início nem fim; a essência de toda esperança, paz, satisfação, misericórdia e plenitude; a fonte de tudo na Criação que se opõe às forças da confusão e caos e sofrimento e dor; uma fonte infinita de Luz e uma presença eterna indescritível.” [1]
Isso porque a Energia do Criador é cuidadosa e é distribuída por todos os segmentos da sua Criação. Ele faz isso porque o mundo físico foi construído justamente com a finalidade de que Ele pudesse tornar-se conhecido pelos seus atributos.
E como bem intuiu Platão, em seu sobre a dimensão das formas ideais, a Energia do Criador é distribuída no mundo em forma de Luz, na qual habitam os arquétipos que nós chamamos de bondade, paz, felicidade, sabedoria, amor, justiça, enfim, todas as abstrações que a nossa mente pode fazer para dar sentido à vida e conhecer o universo. Todos esses arquétipos são trazidos ao mundo real pela sua Luz Infinita porque o Desejo Dele é compartilhar conosco a sua Plenitude.
“A Luz é boa. Separemo-la das trevas”, disse o Criador no princípio. Tudo que é bom está na Luz. A ausência dela é a natureza do mal. Já a presença de Luz em nossas vidas nos dá a medida do prazer que sentimos em viver e a ausência dela nos faz sentir constrangimento e dor. Obter prazer e evitar a dor é a função precípua do nosso sistema neurológico.
Na Cabalá, esse pressuposto se refere à recepção da Luz. Quem a recebe e compartilha nunca experimenta a dor da decepção, do constrangimento, do medo da morte e das agruras da vida porque tem a Energia que vem do Criador. É como ter uma bateria cuja força nunca se esgota porque é alimentada por uma fonte perene.
Esse também é o pressuposto que fundamenta a prática da verdadeira Maçonaria. Todo profano que nela ingressa tem como objetivo tornar-se um recipiendário da Luz. Por isso ele tem que primeiro conhecer as trevas. Esse é significado do simbolismo da iniciação, onde ele é vendado, passa um tempo em um subterrâneo escuro, convivendo com símbolos da morte e da escuridão, para, em um ritual de apoteose e exaltação, receber a Luz que foi buscar no Templo. E depois de passar pelas provas simbólicas a que é submetido, a venda lhe é retirada e ele recebe a Luz na presença dos Irmãos.
A forma do homem
Nossas almas são como uma bateria que acumula essa Luz. Elas são centelhas de energia que vieram do próprio Criador quando Ele se manifestou através da grande explosão que os cientistas chamam de Big Bang. Energia é poder. Ela move o mundo. Não serve apenas para acionar motores e iluminar nossas casas. Ela é o estofo de tudo que existe no universo.
Nossas almas são centelhas dessa energia. Elas são células energéticas que alimentam nosso cérebro para que ele produza os pensamentos que estão na base das nossas ações. E também provém, através do metabolismo energético, a força que movimenta nervos e músculos para que eles realizem as ações que o cérebro nos inspira. Por isso a sabedoria popular diz que quando pomos a alma em um empreendimento ele nunca falhará.
De onde vem a nossa alma? A Cabalá responde: Ela vem da Energia inesgotável de Deus, essa Energia que Ele um dia concentrou em um Ponto Único no vazio cósmico e, em virtude dessa concentração (Tzim Tzum) fragmentou-se em uma formidável explosão de Luz.
Nós somos um dos resultados que essas centelhas luminosas que Ele expeliu no vazio cósmico produziu. Realizamos múltiplas interações no mundo da matéria para nos tornarmos o que somos. Mas todos conservamos, dentro de nós, essa fagulha da Energia dos Princípios. E se quisermos mais Luz em nossas vidas temos que acionar continuamente essa célula energética que está na razão principal da nossa existência. Isso significa assinar um compromisso com a vida. Participar, ativamente, da Obra do Criador como seu pedreiro. É a prática da pura Maçonaria, como diz Luiz Gonzaga em seu hino em homenagem à Irmandade.
O universo é um processo que está sendo construído dia a dia pelas nossas ações. Na ação em que a nossa alma participa com a intenção de irradiar a sua Luz nós estamos realizando o Desejo de Compartilhar, que foi o motivo pelo qual o Criador resolveu se manifestar como realidade física.
Foi para realizar o Desejo de Compartilhar a sua Potência que nós fomos feitos, segundo a Torá, “à sua própria imagem.” Essa imagem não é, evidentemente, algo que pode ser representado por algum meio que a mente humana consiga imaginar, porque Deus não tem forma nem imagem, mas sim porque, sendo o universo o “corpo físico” Dele, entende-se a dicção bíblica como uma analogia bem ajustada à realidade desse fato, pois sendo Ele capaz de assumir todas as formas, nenhuma pode ser identificada como sendo a Dele. Ele é todas as formas, e por ser tudo o que pode ser formatado, nenhuma forma em particular pode ser reivindicada como sendo a Dele.
O desenho estrutural do homem reflete a imagem do corpo físico do Criador, manifestado no mundo real em todas as suas formas, e não o próprio Criador em sua Essência, pois essa ninguém conhece. Ela é pura Energia, e como sabemos, Energia não tem forma nem imagem.
A Cabalá explica esse conceito com a formação do homem primordial, conhecido como Adão Kadmon. Segundo o Zhoar “a forma do homem é a imagem de tudo o que está acima [no céu] e abaixo [da terra]; e, portanto, o Santo Ancião, [Deus] o selecionou para a Sua própria forma.”[2]
Segundo essa visão, explorada pela primeira vez pelo filósofo judeu Philo de Alexandria no século II antes de Cristo, o homem primordial, Adão Kadmon, é a personificação de todas as manifestações divinas, ou seja, o Logos (Verbo), como ele o chama. Ele corresponde às dez sefirots da Árvore da Vida, que significa a própria imagem do universo manifestado. São os atributos de Deus refletidos no mundo real para que Ele se tornasse conhecido. Por isso se diz que Ele está em todas as coisas, mas as coisas não estão nele. Ele é o mundo (expresso na ideia do Logos -Eu Sou-) mas o mundo não é Ele, pois este é uma emanação da sua Potência, ou seja, uma expressão do Seu Pensamento, e não Ele Próprio em sua Essência.
Nessa visão, o Adão terrestre seria uma cópia do Adão celestial, criado pelo Pensamento Divino, como representação, no universo da vida, do mundo idealizado por Deus. Por isso, tanto Platão quanto Philo se referem ao homem como um microcosmo, feito à semelhança do macrocosmo (o universo).
O homem universal
O universo, nessa visão, e nós mesmos, somos a nossa própria consciência dele e da nossa existência dentro dele. Essa é uma dedução feita por um físico que estuda as propriedades da matéria e da energia quântica que lhe dá origem e forma.[3] Mas essa ideia já estava expressa no Zhoar, como podemos ver. “A forma do Homem”, diz o Zhoar “compreende todas as coisas, e todas coisas podem sustentar a vida por meio dela. Como o Homem não havia ainda sido criado, os mundos que o precederam não puderam nem viver nem se sustentar e caíram em ruínas até que a forma do homem tivesse sido estabelecida. Depois da criação do Homem, todos eles renasceram, mas sob outros nomes.”[4]
O quer dizer essa estranha locução? Apenas que o universo e o próprio homem se refletem um no outro e assumem forma e circunstância nessa reciprocidade. Nela é que se confirma o axioma fundamental da Cabalá quando afirma ser o mundo real um Desejo manifesto do Criador de compartilhar a sua Potência, e a vida também como um Desejo manifesto dela mesma em compartilhar a sua.
Essas intuições também já haviam frequentado o pensamento de Pitágoras e Platão. Eles encontraram o ideal da perfeição universal nos números e na geometria. O físico Frank Wilczek, ganhador do prêmio Nobel em física, em seu livro “A Beautiful Question, 2015” defende essa tese usando as modernas descobertas da matemática e da física nuclear. A questão por ele formulada é: podem a realidade quântica e os fundamentos da matemática serem invocados para explicar a vida real? O mundo real teria condições de comportar-se como o mundo quântico? Como ver a participação da mente humana nesse processo, se sabemos que ela interfere em tudo que observa e participa?
Wilczek diz que “existe de fato uma música das esferas” incorporada aos átomos e ao conceito de vazio, não como uma música no sentido comum, mas algo equivalente ao conceito de harmonia, como diz Johannes Keepler – “um canto de anjos.”
Wilczek lembra que o famoso desenho de Leonardo da Vinci, feito sob a influência do famoso arquiteto romano Vitrúvio, homenageia o conceito de humanismo recuperado pela Renascença. É uma referência à beleza do ser humano que resgata o ideal sofista contido no axioma “o homem é a medida de todas as coisas”. O homem nu, com pernas e braços em duas posições representa o círculo perfeito (primeira posição) e o quadrado, que no esquema pitagórico simboliza a quadratura do círculo. Na opinião de Pitágoras e seus seguidores essa era a representação perfeita do universo. Em analogia com a ideia cabalista do homem universal, Da Vinci colocou o corpo humano nessa moldura para mostrar que o homem e o universo estavam em perfeita sintonia, justificando o velho preceito hermético de que o macrocosmo (o universo) e o microcosmo (o homem) obedeciam às mesmas leis de construção. Como o próprio Wilczek diz textualmente, o desenho de Leonardo da Vinci “sugere a existência de conexões fundamentais entre a geometria e as proporções humanas ideais”[5]
Voltando às intuições cabalistas constantes do Zhoar, temos o seguinte texto: “Antes que de se estabelecer o equilíbrio, O Rei e a Rainha – o mundo real e o mundo ideal – não se olhavam face a face. Portanto, os primeiros reinos morreram e os primeiros mundos tombaram em ruínas. Esse equilíbrio pertence completamente à vida interior e só repousa em sua própria invisibilidade. E as balanças sustentarão o que não é, e o que é, e o que ainda há de ser.”[6]
Nessa intuição podemos identificar tanto a visão de Pitágoras, de que a geometria é a ferramenta usada pelo Criador para dar forma à criação, quanto às especulações de Wilczek e Penrose sobre a tese de que o universo toma forma através da consciência humana. E da Cabalá também, pois de acordo com Ben Yochai, “o Eterno deu lugar em seu Pensamento à criação daquele em que nós vivemos. E quando esta última criação estava a ponto de ser cumprida, todas as coisas deste mundo, todas as criaturas do universo e tudo o que havia de ter vida e existir aqui embaixo passaram diante de Deus em suas formas atuais. Pois o que
foi outrora também será no futuro e o que será já foi.[7]
Aqui se justificam duas famosas metáforas bíblicas: a do Eclesiastes 1:9, que diz que nada há de novo embaixo do sol e tudo que foi voltará a ser, e a que consta em Gênesis 2:19, sobre o fato de Deus conferido ao homem a faculdade de dar nome a todos os seres. “E tudo o que chamasse o homem à alma viva, esse seria o seu nome.”
Isso significa que nós somos os veículos pelos quais a Energia do Criador se distribui pelo cosmo. Talvez não exista no universo nenhuma outra espécie como a nossa. Mas se existir, certamente ela terá sido feita com a mesma finalidade. Porque a vida só se justifica como leito pelo qual a Energia do Criador escorre. Através da vida ela flui pelo vazio cósmico, povoando-o com a presença Dele.
[1] Michael Berg- O Caminho; Imago, 2001
[2] Zhoar, op citado, pg. 82. Na imagem, a representação do homem primordial, Adão Kadmon- Kabbalah Revelada – Desenho de Leonardo da Vinci
[3] Chopra e Kafatos- Você é o Universo, citado
[4] Idem, pg 85
[5] A Beautiful Question, op citado.
[6] Zhoar op. Citado, pg. 107
[7] Idem, pg. 108