TIKUN SCHOVAVIN- O RITUAL DA PURIFICAÇÃO
“ Eles (os judeus) acreditam firmemente que, se o sêmen de um homem lhe escapa, ele gera espíritos malévolos, com o auxílio de mahalat, (espíritos malignos) e Lilit (um demônio feminino). Esses espíritos, todavia morrem quando chega o devido tempo. Quando um homem morre e seus filhos começam a chorar e se lamentar, estas schedim (espíritos do mal), também surgem para , juntamente com os outros filhos (carnais), ter sua parte do falecido, como pai deles. Puxam e empurram o corpo até que ele sinta dor. E Deus mesmo, quando vê essa nociva progênie junto ao defunto, se recorda dos pecados do morto.” ─ Cabala, Hendat Iamim , 1763, II 98,b. (citado por Gershon Scholen, A Cabala e seu Simbolismo, São Paulo, 2015).
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Havia poucas pessoas no velório. Todos vestidos de preto e com chapéus da mesma cor. Em volta do caixão, balançavam ritualisticamente a cabeça, enquanto murmuravam salmos em uma língua que parecia ser hebraico. O rosto do cadáver, dentro do esquife, era uma máscara crispada de dor e agonia, como se tivesse morrido em terrível convulsão mental.
Parecia uma reunião de família. Todos eles estavam ali, em volta do seu caixão. Ele podia vê-los, podia ouvi-los, podia sentir os toques asquerosos de suas mãos gélidas e carcomidas. Podia sentir seus hálitos pestilentos e o cheiro das babas purulentas que saiam de suas bocas horrendas. Eles estavam discutindo. E choravam e ganiam como cães raivosos. Voejavam como harpias em volta do seu corpo. Parecia um bando de moscas varejeiras sobre um monte de estrume. Disputavam seu corpo como se fosse um bando de hienas brigando por um pedaço de carne decomposta.
Pois isso era o que ele se tornara agora. Um monte de lama malcheirosa que começava a se decompor. Era um golem de quem a palavra emet (verdade) havia sido tirada da testa e no lugar a palavra met (morte) havia sido escrita. Podia ver os vermes que começavam a roer as suas entranhas. Além da dor que aqueles demônios lhe provocavam, revirando e puxando suas carnes com aquelas garras aquilinas, não podia evitar também o nojo. Nojo do que era agora. Nojo do que fora. Nojo do se tornara.
Aqueles vermes que começavam o corroer suas entranhas também eram demônios que ele mesmo criara e hospedara em seu corpo durante toda sua vida. Lamentava agora ter desprezado os conselhos da Torá. Arrependia-se de não ter seguido as mitzvá (mandamentos). E de ter violado o sabbath (sábado) trabalhando e fazendo coisas que lhe eram interditas fazer naquele dia sagrado.
Via agora que era verdade o que diziam os mestres da sinagoga e lamentou ter desprezado os seus ensinamentos. Pois todos aqueles espíritos imundos que agora se aglomeravam, como uma horda de cães famintos, em volta do seu cadáver, eram seres incorpóreos formados por gotas de seu sêmen, que fora derramado em úteros prostituídos, ou abandonados em preservativos que evitavam que ele cumprisse a função pela qual o Eterno Deus o fez: a procriação.
Os rabinos diziam que todo sêmen derramado em vão era colhido e aproveitado por Lilit, a mãe dos demônios, para gestar seus filhos danados. E que estes consideram o homem que forneceu esse sêmen como pai. Por isso a Torá condenava o onanismo (masturbação), o homossexualismo e o sexo irresponsável, feito unicamente para obter prazer. Por que o sêmen é sagrado. Foi dado ao homem para ele procriar.
Cada gota de sêmen desperdiçado podia dar origem a um demônio. E no dia do seu enterro, quando o homem estava sendo levado à sepultura, os filhos danados, gerados do seu sêmen desperdiçado enxameavam ao redor do seu cadáver, que nem abelhas, clamando: “tu és nosso pai”; e lamentavam e pranteavam atrás do seu ataúde, porque perderam o seu lar e agora estão sendo atormentados juntamente com os outros demônios (incorpóreos) que pairam no ar.
Sim, ele agora sabia de onde vinham todos aqueles pensamentos terríveis e a inspiração para aqueles atos indignos que cometeu durante a vida. Dera geração à uma família de demônios. E enquanto ele vivera os danados tinham uma casa e um lar. Agiam através dele. Por isso ele roubou, fraudou, prostituiu, destruiu famílias e lares, tudo em nome de um desejo conspícuo, mesquinho e egoísta, que tinha como único valor o prazer carnal, o exercício do poder e o acúmulo de bens.
Não deixara filhos carnais de sua semente. Não tinha uma família humana para executar por ele o tikun schovavin (rito da purificação), para afastar do seu cadáver aquela horda de “filhos malcriados”, que agora disputavam entre si o seu cadáver, como se ele fosse um precioso relicário. Por isso seu rosto parecia aquela máscara mortuária de horror e agonia, que a todos assustava. Ele sabia agora qual seria o destino do seu espírito, disputado por aquela horrorosa horda demoníaca que se comprazia em dilacerar-lhe o corpo. Arrependeu-se de não ter tido filhos carnais. De jamais ter amado na vida.
Jamais não. Uma vez ele amou uma mulher. Mas nunca lhe dera filhos. Ao invés, preferira desperdiçar seu sêmen em úteros de prostituição e com amantes a quem se achegava apenas pelo prazer. E no entanto, ele sabia que ela o amara. Mas ela também já morrera há muito tempo. De mágoa e tristeza por todo o mal que ele lhe fizera. Se pudesse voltar atrás...
E ele lembrou-se das palavras de um rabino, que ouvira na sinagoga, quando ainda era uma criança: “ não há um homem, por pior que ele seja, que não tenha uma mulher que o ame: e seja qual for a soma dos seus pecados, se ele tiver uma única pessoa, viva ou morta, que faça para ele o ritual do tikun schovavin, a sua alma poderá ser salva.” Lembrou-se também de outro rabi (considerado um marginal pela comunidade judaica ortodoxa) que disse que todo homem veria a salvação de Deus. Bastaria que se arrependesse de seus mal feitos, ainda que fosse no último lampejo de consciência. E para provar isso esse rabi, que para muitos era o Messias, perdou e levou consigo para o paraíso um ladrão. Bem, ele se arrependia. Deus o perdoaria por isso? Esse era o seu último lampejo de consciência.
E foi então que uma mulher entrou no recinto onde o cadáver estava sendo velado. Ela tinha a cabeça coberta com um véu negro. Não se podia ver-lhe o rosto. Trazia nas mãos um pano preto com o qual cobriu a cabeça do cadáver. Despejou sobre ele um vidro de água fresca e depois rezou um salmo que dizia:
“Envolto em veludo – estais aqui?
Desfeito, desfeito (seja vosso encanto)
Não entrai e não saí.
Que não haja nada de vós nem de vossa parte!
Voltai, voltai, o mar está furioso,
Suas ondas vos chamam.
Mas eu me apego á parte sagrada.
Estou envolto na santidade do rei.”*
Quando o rosto do cadáver foi descoberto, todos se espantaram com a mudança que se operara nele. Agora ele era uma máscara de paz onde a dor e o terror desaparecera e a esperança estava estampada. E o ambiente, que antes exalava pestilência e maus presságios, de repente se aliviou. Uma corrente de ar fresco e bons odores parou no ar. Os demônios, que antes enxameavam em volta do cadáver haviam se diluído como gotas de chuva.
Quanto á mulher ela havia desaparecido e ninguém nunca soube quem era ela nem de onde veio.
- Nota: os versos acima foram copiados do ritual Tikun Schovavim, transcrito por Moisés Zakuto, Veneza 1716- Fonte: Gerson Schollen, A Cabala e seu Simbolismo, pg. 176.