João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


“E foi no fim do dia, Cain trouxe uma oferenda ao Eterno do fruto da terra e Abel trouxe também dos primogênitos das suas ovelhas e das gorduras delas. O Eterno voltou-se para Abel e suas oferendas, mas para Cain e sua oferenda não se voltou, e Cain irou-me muito e descaiu-lhe o semblante.” Gênesis, 4: 3;4

 

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Cain, o primeiro filho de Adão e Eva, nasceu no prazo previsto para que as crias humanas amadureçam e saltem do útero materno para essa outra etapa da vida, que começa depois do parto. Não saberíamos dizer se os nove meses de hoje ― que é o tempo que leva uma semente masculina para se transformar num feto, e depois de ser convenientemente alimentado por uma placenta que se forma no útero da mãe ― é o mesmo que levou Eva para gestar Cain, mas considerando os longos prazos que se dão para os que nasceram e viveram naquela época, é de supor que Cain tenha nascido muito tempo depois, em medidas de hoje, que Adão e Eva foram expulsos do Eden, ou perdido a inocência, que o que nos parece mais certo dizer. E nem que Adão tenha percebido que Eva já tinha o bucho cheio com a semente de um filho quando se deitou com ele, e ele a conheceu, como dizia naqueles tempos quando um macho penetrava uma fêmea no exercício do seu direito de usá-la. O que supomos por inferência, por conta das provectas idades que se concedem às pessoas daqueles tempos é que a virilidade dos homens nesses primeiros lustros desses princípios era bem longeva. Dizemos isso porque Seth, o terceiro filho do casal só nascerá cento e trinta anos depois do parto de Cain, e nesse meio tempo, Eva também gestou Abel, o segundo filho do casal. E este, se quisermos acreditar no que foi escrito nas crônicas oficiais, tiveram intervalo de concepção bem mais curto, pois iremos encontrá-los já bem crescidinhos, com idades bem próximas um do outro, o que faz supor que suas concepções não foram separadas por intervalos muito longos.

Descontando a dúvida anatômica que se poderia levantar do fato de que Adão ainda poderia procriar com cento e trinta anos de idade, que é a idade com que ele fez o terceiro filho, Seth, vamos dar por assentado que Cain nasceu logo após Adão e Eva terem se arrumado no país de Haviláh, e lá montarem casa e família e começarem a cultivar a terra, como mandara o Senhor que eles fizessem se não quisessem morrer de fome.

Da infância dos dois mancebos, Cain e Abel, nada se sabe, apenas se supõe que tenham crescido juntos, já que de pouca diferença de idade eram eles, e que, por exigência ambiental daqueles lugares e tempos, um teve que aprender a plantar e colher os produtos da terra e outro teve que se meter a criar animais; um para prover a família com as necessárias vitaminas, fibras e amidos que o organismo exige para poder crescer e outro para lhes dar a necessária proteína de que todo corpo humano passou a necessitar desde se tornou simplesmente humano.

Mas para que não nos percamos nos meandros dessa história, que por si só já é bastante contraditória, vamos voltar à fonte de onde ela emana e daí continuar. É dessa sorte que vamos encontrar o guapo Cain, moço de rosto comprido e nariz aquilino, arando a terra e espalhando sementes pelos sulcos que abre com uma enxada feita de pedra, porquanto nesses tempos ainda não se fabricam ferramentas de ferro, o que só aconteceria na sua quarta geração na pessoa do seu tataraneto Tubal-Cain.

E nessa mesma imagem podemos ver o mais novo, Abel, moço bonito, um tanto aloirado, de feições suaves, apascentando um rebanho de ovelhas e cabras, umas e outras em seu próprio redil, porquanto, como lhe ensinou seu pai Adão, não é bom misturar as espécies para não compuscar-lhes a pureza, tradição que seria mantida em relação à própria espécie humana e tantos constrangimentos futuros provocaria.

Mas não se sabe por que cargas d’agua Jeová, que digamos, ainda não era conhecido por esse nome, tinha uma especial predileção por Abel e pelo que ele fazia para ganhar a vida, enquanto votava a Cain muito pouco respeito pela profissão que ele escolhera. Já sabemos que Jeová era pouco afeito a estabelecer critérios lógicos de escolha, porquanto sendo ele Deus, e Deus não precisa prestar contas a ninguém, podia fazê-las ao seu bel prazer. Já as fizera, se não nos falha a memória, em ocasião anterior quando estava distribuindo competências entre os anjos, delegando ao Arcanjo Miguel uma posição hierárquica superior às demais nobrezas celestes e com isso havia provocado a rebelião liderada por Samael, que também se chama Lúcifer, cujas consequências estavam agora por desencadear.

Sucede que Jeová, que a esse tempo já havia mudado um pouco o seu pensar, pois depois da oposição criada por Samael e seus seguidores, e do descaminho por ele praticado aos seres humanos, ele abandonara a sua postura de Deus condescendente e tolerante e passara a adotar certas composturas mais afeitas a sua necessidade de se comunicar com as suas crias. Sabia ele que não podia deixá-la ao Deus dará, até porque Deus era ele, e quando fez o homem, ele o fez para que ele, Jeová, não precisasse ser um provedor para a espécie humana, já que o homem, por si só, tinha herdado todos os seus atributos e bem podia ganhar a vida por si mesmo. Por isso se diz que ele descansou depois de fazer o homem, porque então, como se fosse um empresário que acabou de fundar uma próspera empresa e delegar a sua gestão a um competente diretor, podia aposentar-se e viver das rendas que a empresa lhe produzia.

E foi nessa sua nova visão das coisas que ele passou a exigir das suas crias um óbolo, ou tributo se preferirem o termo, não sabemos dizer se diário, mensal ou anual, que essa ciência que trata da tributação, não sendo coisa nova, no entanto ainda não havia sido instituída como matéria normativa naqueles dias. O que parece certo, e foi registrado, é que sendo Abel criador de cabras e ovelhas, ele deveria ofertar regularmente ao Senhor algumas cabeças do seu rebanho, e Cain, sendo agricultor, pagar a sua cota com os produtos da sua horta. E ambos faziam isso queimando os produtos de sua lavra numa fogueira, para que Jeová as recebesse, lá nas alturas onde ele coloca o seu trono, na forma de uma fumaça que deveria subir ao céu levando o cheiro das oferendas direto ao seu nariz.

Do que se escreveu a respeito conclui-se que Jeová, embora tenha o homem para viver do agronegócio, não tinha muitas simpatias pelo que hoje se chama agricultura, pois que torcia o nariz para o cheiro das frutas e legumes que Cain queimava em sua homenagem; ao mesmo tempo se agradava muito das oferendas que Abel lhe fazia de carne e gordura dos seus rebanhos, o que nos leva a pensar que entre as suas preferências econômicas, a pecuária era mais apreciada.

Um pensamento puxa outro e logo nos vem ao bestunto que as preferências mostradas por Jeová, nesse caso, muito têm a haver com as dissidências e conflitos que se espalharam entre a espécie humana desde então, pois sabido é que pai que dá preferência a um filho em detrimento de outro, por mera prerrogativa de autoridade, ou por outro motivo qualquer que não seja crime inafiançável ou hediondo, está espalhando discórdia no seio da família. Dessa sorte é que podemos ver o moreno Cain, suando bicas em sua roça, sob o sol inclemente que nunca arrefeceu naquelas plagas, cavando o solo pedregoso da sua horta com uma cara de poucos amigos, o semblante decaído, como se registrou que ele ficara depois de sofrer essa, que poderia ser chamada uma rejeição por parte do Senhor. Mas nós, que conhecemos a origem de Cain, podemos aquilatar melhor esse comportamento de Deus em relação a ele, porquanto sabemos que seu verdadeiro pai não é Adão, mas exatamente o seu opositor Samael. Destarte, não é das oferendas de Cain que ele não gosta, mas é do próprio rapaz que ele não se agrada. Conquanto se diga que os filhos não devem pagar pelos pecados dos pais, não é assim que Jeová pensa, como ele mesmo deixou claro em uma de suas muitas manifestações posteriores pela boca dos seus arautos, quando diz que visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração.

Já nos referimos em outra parte deste relato, que Deus, quando delegou a Adão o poder de nomear as criaturas que ele pôs no mundo, o que ele fez foi criar o chamado princípio da identidade, programa neurológico segundo o qual ― se quisermos acreditar que a mente humana funciona como uma espécie de computador ― todas as coisas que existem são identificadas segundo a imagem que fazemos delas. Assim, o que cada pessoa pensa, mesmo que não seja verdade para todos, para ela, que pensa, é. Assim, se alguém meter na cachola que um elefante é menor que uma pulga, então a pulga é maior que o elefante e pronto. Não haverá quem desminta para ela essa verdade. O poder dado ao homem, de criar suas próprias verdades, vem dessa estranha faculdade que Deus, talvez inadvertidamente, deu a Adão quando mandou que desse nomes à criação e tudo que ele nomeasse assim seria chamado. E essa faculdade ele a passou a seus descendentes, razão pela qual estamos aqui a conjecturar se as hortaliças, as lentilhas, a aveia e o grão de bico, e quiçá o trigo que Cain planta em sua roça tem menos sabor ao paladar de Jeová do que as carnes e gorduras das cabras e ovelhas de Abel. A não ser que Jeová mais se agrade dos produtos feitos por Abel por causa da lã que vem das suas ovelhas, e aí seríamos obrigados a pensar que Deus sente frio, o que além de ser algo impensável de atribuir a um ser que inclusive manda no tempo pois foi ele que o fez, ainda encontraria o contraponto de o local onde essas coisas se passam ser exatamente aquele onde o sol costuma bater mais forte e o calor chega a ser insuportável. Daí a nossa inferência de que a preferência de Jeová por Abel e sua ojeriza pelas ofertas de Cain se originarem mesmo no fato de Cain ser produto da semente do seu opositor.

É assim que vamos encontrar Cain no campo, com a enxada na mão, a cara de poucos amigos, a responder a pergunta que Jeová lhe faz, “Porque essa cara Cain, acaso acordastes com dor de barriga?”, ao que Cain responde “Não é a barriga que me dói, mas o meu orgulho, porquanto o meu trabalho não é reconhecido” ao que Jeová retruca, “Se puderes suportar a falta de reconhecimento e não deixares o teu orgulho falar por ti, então serás perdoado, porque essa será uma ferida que doerá em todos os seres humanos. O que fizerem de bom será logo esquecido e o que fizerem de mal será lembrado para sempre. Não encontrarão reconhecimento do seu mérito em suas famílias ainda que os estrangeiros cubram seus nomes de glória. Essa será umas das consequências da obra do teu pai, porquanto dele foi a ação que fez a consciência dos homens despertar para o mal.”

Claro está que Jeová não falava de Adão, sabendo, como por certo sabia, que Cain não tinha nascido da semente dele, mas sim de Samael, o Dragão, o anjo caído, que tinha seduzido Eva e dormido com ela mesmo antes de Adão tê-la conhecido. E Cain, claro, ignorante desse fato, não ligou uma coisa com outra, mas apenas pensou que se tratava do caso da desobediência dos seus pais aos ditames do Senhor em relação ao fruto da árvore do conhecimento, pois essa sim, era uma informação que Adão não escondera dos seus filhos.

 

Fora esses constrangimentos, que se põe na conta das intrigas familiares, que de ordinário todas as famílias as têm, a vida do casal e da família que eles formaram corre normal e até com uns sinais de prosperidade, vindos principalmente do labor de Cain na sua roça e de Abel nos pastos. Quanto à Adão, posto que já agora já tem dois guapos mancebos para fazer o trabalho mais pesado, dedica-se mais ao serviço de administrar as rendas da família. O que faz até com alguma competência, pois já conseguiu adquirir as terras onde Cain labora, as matrizes das quais Abel desenvolve o seu rebanho e até já saiu da caverna onde primeiro habitou depois de expulso do Éden, e fez uma casinha de adobe - aqueles tijolos feitos de barro misturado com palha e queimado em fornos de lenha - onde agora a família mora.   

O que Adão não notou e Eva, conquanto tenha percebido, não levou na devida conta, é que os humores entre os dois jovens rebentos da família não andam muito bem desde algum tempo. Ela percebeu que Cain anda muito arredio e não raras vezes mostra sinais de irritação contra o irmão, pelo tratamento rude que lhe dispensa, e toda vez que o pai, ou mesma Eva lhe pede que faça algum serviço, como buscar água no riacho ou lenha para o fogão, ele responde com o sizo carrancudo “mande Abel fazer isso, ele não é o queridinho de vocês?” Eva, que é bem mais perspicaz que o marido, até porque é depositária de segredos que ele não compartilha, conquanto se mostre preocupada com essa súbita mudança de comportamento de Cain, não desconfia que esses maus humores do seu primogênito seja fruto de um sentimento de rejeição, até porque ele não sabe que é filho bastardo e dessa fonte não pode ser o constrangimento que sofre o espírito do rapaz. Computa-o mais aos naturais humores que assaltam todo jovem que chega à idade de Cain e começa a ter os incômodos próprios do homem que precisa tomar um rumo na vida e não sabe exatamente o que fazer sobre isso. 

Fosse só uma vez ou outra, tudo ficaria por conta do vento que ora soprava para um lado, ora para outro, e nada do que aconteceu teria acontecido. Mas isso ocorria, invariavelmente, muitas vezes, e parecia já coisa dita e assentada, que toda vez que os irmãos eram chamados a fazer suas oferendas a Jeová, o fumo da fogueira de Abel subia verticalmente para o céu, como um redemoinho de cone invertido, enquanto o de Cain espalhava-se horizontalmente, como se soprado de cima para baixo. Depois de contemplar repetidas vezes o fenômeno, Cain chegou a conclusão de que aquele era claramente um sinal de que Jeová dele se desagradava, enquanto do irmão Abel se comprazia. E ao cabo de algum tempo a inveja começou a roer-lhe o espirito de tal maneira que nem dormir podia mais e no meio da noite saia a contemplar as estrelas ruminando os mais sinistros pensamentos que lhe vinham à cabeça.

Dessa sorte, pela manhã acordava sempre de buxo virado, como se dizia antigamente da pessoa cujos humores, quando acordam, são tão azedos quanto os vinagres de má qualidade. E mais ainda ficava quando, no final do dia em que as oferendas eram feitas a Jeová, via que estas continuavam a queimar com suas fumaças a espalhar-se horizontalmente pela terra como se um potente ventilador estivesse a soprá-las enquanto as de Abel subiam verticalmente, direito para o céu como se um aspirador estivesse lá ligado para sugá-las.

(continua)

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 23/07/2024
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