E Cain disse a Abel, seu irmão Vamos lá fora...E sucedeu que estando eles nos campos, Cain levantou-se contra Abel e o matou. Gênesis, 4:8
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Vá lá se explicar essas coisas que Jeová, às vezes, tira da sua sagrada cabeça e só ele sabe porquê. O fato é tudo poderia ter sido evitado se ele quisesse, já que, sendo Deus ele tudo pode, mas ele não quis. Talvez porque, se o fizesse, quebraria a própria regra que estabeleceu quando despachou Adão e Eva para fora do Éden, tirando deles a capa de inocência que os vestia e determinando que, dali para frente, eles e seus descendentes estariam por conta própria, sua alma sua palma, como se diz, e tudo que fizessem seria de sua própria escolha e nada mais lhes seria interdito, por que agora, tudo se faria ao seu próprio arbítrio.
Destarte, o jovem e solerte Abel acabou pagando caro por esses desígnios, porque o que tinha que acontecer aconteceu, porque, uma tarde quando os dois estavam queimando suas oferendas a Jeová, Cain viu que o Senhor continuava a torcer o nariz para as dele e recepcionava com prazer as de Abel; e a sua inveja, convertida em ódio, chegou ao cume e ele, com uma porretada da sua enxada de pedra, abriu a cabeça do irmão, matando-o instantaneamente.
A impressão que se tira desse episódio é que o próprio Senhor já estava esperando esse infeliz desfecho, e talvez até o desejasse, por conta de algum secreto propósito. Pois tão logo Cain enterrou o corpo do irmão em uma cova que abriu no meio da sua própria horta, eis que imediatamente um arbusto à sua frente se ilumina com uma luz que parece um fogo azulado e a voz do Senhor sai de dentro dele, como de ordinário ele se apresentará ao ser humano outras vezes no futuro, e pergunta “Onde está teu irmão, Cain?” como se ele não soubesse que o pobre Abel jazia naquela cova ali recentemente aberta e Cain, alarmado por aquela súbita aparição, responde à sua interpelação com nervosa irritação “Sei lá, por acaso sou eu o guarda do meu irmão?” ao que Jeová, agora já sem o tom irônico da primeira pergunta, que fora feita como ele não soubesse do acontecido, diz” O que fizestes, desgraçado, pois o sangue do teu irmão está clamando a mim desde a terra” e Cain, que não entendeu muito bem a metáfora, logo olhou para a cova em que enterrara o irmão para ver se dali saia algum sangue, mas nada vendo, voltou-se para o arbusto que ardia, porquanto a voz do Senhor voltou a ser ouvida e ela estava proferindo sobre ele uma terrível maldição “Agora pois, serás maldito sobre a terra que abriu a sua boca e recebeu o sangue do seu irmão. Quando a cultivares ela não dará mais para ti os seus frutos; serás errante e fugitivo sobre a terra.”
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Metáfora de largas consequências essa, que continha a maldição proferida sobre Cain, tanto que foi aproveitada depois por muitos povos, que sacrificavam os inimigos vencidos e deixavam o sangue deles escorrer para as plantações para fertilizá-las, como faziam os maias e os astecas, por exemplo, e outros povos que usavam esse artifício para agradar aos deuses da natureza; e também, ao que parece, foi da interpretação desses dizeres que veio a justificativa do fato de os supostos descendentes de Cain se tornarem errantes e fugitivos sobre a terra, mesmo nos dias atuais, pois que ainda vivem no deserto, mudando suas tendas de um lado para outro, sem nunca encontrar um naco de terra agricultável onde possam se estabelecer em definitivo.
Mas ao que parece Cain não se apoquentou muito com essas imprecações porquanto interpelou o Senhor com a pergunta “é tão grande assim o meu delito que não o possas suportar, e por causa disso me expulsas desta terra?” É o que foi registrado que ele disse, mas é possível que esse dialogo tenha sido bem mais amplo, algo do tipo “ não fostes tu mesmo que provocastes esse sentimento em mim com a tua recusa em receber as minhas oferendas? Por acaso não sabias, tu, que é Deus e tudo sabe, que existem coisas que um ser humano não pode suportar e a injustiça é uma delas?” Ao que Deus responde, “Eu deixei que os seres humanos pudessem pensar com suas próprias cabeças e escolherem entre o bem e o mal. Portanto, o que fizestes, fizestes por tua livre escolha e não a minha.” Ao que Cain retruca, “ Tudo bem, eu fui o executor, mas tu bem que poderias ter evitado, mas não fizestes porque certamente tens um propósito para isso, e agora eu sei que usas os seres que criastes somente para os teus inconfessáveis fins, e que és interesseiro e egoísta, pouco se importando com o destino das tuas crias, pois o que te importa é apenas ser conhecido e adorado como Deus.” “Tens razão quanto ao que dizes” respondeu o Senhor, “e muitos outros crimes serão cometidos em meu nome e eu não os impedirei porque preciso justamente saber o quanto sou poderoso e acreditado e só saberei na medida em que as pessoas sejam capazes de fazer o que quer que seja pensando que me agradam.” “Então”, disse Cain, “o mal que houver no mundo virá também de ti, porque deixastes que a alma do homem se corrompesse quando poderias ter impedido. Como podes falar em castigo se fostes tu mesmo que deixastes o mal entrar no mundo? Como podes cobrar dos outros uma dívida que também é tua?” “Cain”, respondeu Jeová, "não tentes confundir-me. Eu deixei que o crime e o vício entrassem no mundo, mas também dei ao homem a prerrogativa de escolher entre o mal e o bem. E entre esses dois polos a alma dele se equilibrará. Como poderá ele saber o que é o bem se não tiver o mal para fazer a comparação? Quem poderá distinguir a verdade, se não tiver o contraponto da mentira? Quem distinguirá a luz se não tiver o contraste da escuridão?” “Podes dizer, Cain”, continuou Jeová, “Que eu te usei, assim como usei Samael para criar um polo para que a energia da minha potência pudesse circular. Porque se assim não fosse eu não poderia criar o mundo. Eu sou espírito, mas espírito sem matéria para se manifestar é uma não existência, ou se quiseres, uma existência negativa que por não ser conhecida, não existe.” “Então” retrucou Cain "porque me condenas a viver errante no deserto e amaldiçoas a terra onde terei que habitar? Porque me expulsas daqui e ainda assim não poderei me ocultar de ti, e estarei sujeito a ser assassinado por quem me encontrar e souber que sou amaldiçoado?” “Não será sempre assim”, disse Jeová, “porque porei em ti uma marca, para que quem o encontre saiba que não deve matá-lo, porque a vingança é minha. Mas, se porventura alguém vier a matar Cain dele tomarei vingança sete vezes mais.”. “Que marca será essa?” quis saber Cain “ Ela será um sinal distintivo para que todos saibam que não devem matar Cain.” “Falas por enigmas” disse Cain. “Explica essa profecia, porquanto não tenho inteligência para entender tuas charadas. Marcas-me para que ninguém me mate e ao mesmo tempo dizes que quem me matar será castigado sete vezes mais?” “Sim”, disse o Senhor” porque agora que o mal entrou no mundo, os crimes não deixarão mais de acontecer, mas todos quantos o praticarem terão que pagar por eles. E suas penas lhes parecerão sete vezes mais pesadas. A marca que porei em ti será a marca do conhecimento e ela estará doravante sobre todos os homens. Por ele os homens matarão e morrerão e se de Cain tomo vingança sete vezes, de quem matar Cain tomarei vingança setenta vezes sete.”
Claro está que em todas as nuances dessa história há segredos arcanos a decifrar e quem não os têm a mão fica a imaginar se nesses tempos tudo acontecia por obra de milagrosas intervenções do poder divino. Ou então, sendo daqueles que em tudo busca fumos de logicidade, dizem que esses ditos são metáforas urdidas com fins específicos, muitas vezes até inconfessáveis. Mas pode ser também que essa história tenha sido escrita numa forma codificada, própria da língua que a cunhou, que como se sabe, esconde nas letras do seu alfabeto e nas composições que se fazem com elas, significados ocultos que só os naturais dessa língua conhecem.
Também já se aventou a possibilidade de que essas histórias se refiram realmente a fatos históricos e conhecimentos científicos que as pessoas daquele tempo não tinham sabedoria para interpretar e por conta disso atribuíam aos deuses tais intervenções. Por conta disso há quem diga que o verdadeiro significado desse episódio envolvendo os dois primeiros filhos de Adão e Eva sofreram uma sensível mudança de enredo para adaptá-lo, quiçá, à uma narrativa que se pretendia desenvolver, com claras intenções de se criar para o povo que a escreveu contornos heroicos que pudesse justificar os direitos que ele reivindica sobre a terra onde ela se passa. Assim, essa notícia, que é cotada como o primeiro assassinato da história, talvez tenha ocorrido de fato, mas não pelos motivos informados no livro, mas sim porque os animais de Abel invadiam as plantações de Cain e as destruíam, o que nos parece um motivo bastante lógico para que Cain não gostasse de Abel e o tivesse como inimigo. E que Cain, na verdade, são os povos que habitavam a Palestina no tempo em que os israelitas, povo pastor por excelência, por lá chegou. Para rebanhos de cabras e ovelhas, um campo de aveia, cevada, trigo e outras hortaliças, e mais ainda para seus pastores, essa deve ser mesmo uma "terra prometida", um verdadeiro jardim do Éden, um paraíso a conquistar. Dessa sorte, Abel é o próprio povo de Israel, o povo querido de Jeová, que teria sido assassinado pelos palestinos, o perverso Cain, de quem Jeová toma vingança sete vezes mais.
A propósito, para dar mais supedâneo histórico á essa narrativa, basta lembrar que o conflito entre pecuaristas e agricultores é um problema que até agora não se resolveu e tem sido motivo de muitas mortes pelos meios rurais do mundo inteiro; de tal sorte que se dissermos que Cain continua matando Abel e Abel matando Cain até os dias de hoje não estaríamos dizendo nenhum disparate. Na trilha desse pensamento poderíamos também dizer que a tal profecia que o Senhor lançou sobre Cain ― de que quem o matasse seria castigado sete vezes mais ― não encontra explicação em nenhum cânone até hoje desenvolvido pelos que se consideram doutos nessas escrituras. A não ser que se considere ser ela uma justificativa para o próprio propósito da narrativa, pois que ela dá a posteridade de Cain como desaparecida depois de sete gerações, e se quisermos crer em fontes apócrifas, Cain teria sido morto por pessoas da sua própria descendência.
Também não estaria desvestido de razões quem dissesse que essa profecia não passa de um mero exercício de mistagogia, sabido como é, que o povo que escreveu essa história tinha um indisfarçável fascínio pelo número sete, que eles consideravam sagrado, porque seria o número de Deus, o número perfeito, que sempre se invoca para dizer que uma obra está acabada. De tal sorte que em seus escritos encontramos informações que dão conta que Deus fez o mundo em seis dias e descansou no sétimo, que os animais devem ter pelo menos pelo sete dias de idade antes de serem usados para o sacrifício, que um leproso chamado Naamã deve se banhar no rio Jordão sete vezes para se curar, que o exército de Josué deve marchar ao redor de Jericó por sete dias e no sétimo fazer sete voltas em torno da cidade e sete sacerdotes devem tocar sete trombetas para fazer os muros caírem, e por aí adiante. Isso nos leva a pensar que o número sete está na ordem do cumprimento de algum tipo de mandato divino, o que nos força concluir que a tal profecia lançada sobre Cain tem algo a ver com o número de suas gerações, que são contabilizadas no livro como sendo exatamente sete.
Por outro lado, como uma especulação leva à outra, ficamos a desconfiar que o episódio de Cain e Abel nada tem a ver com as preferências gastronômicas de Jeová, que segundo os cânones oficiais teria se agradado das gorduras e da carne que Abel queimava em sua homenagem e desagradado do cheiro que as hortaliças e os grãos que Cain queimava para ele. A se crer nessa proposição, teríamos que colocar Jeová como um rematado carnívoro, apreciador de sacrifícios sanguinolentos, o que não se coaduna com as visões e pensamentos que temos a seu respeito, além de colocá-lo na conta de um mistagogo, que à maneira de Nostradamus, gosta de fazer profecias que propiciam dúbias interpretações.
Por outro lado - o que se repete aqui apenas para reforçar a tese - não seria despropósito pensar que essa história reflete nada mais, nada menos do que um processo histórico que se desenrola nessas terras desde que as primeiras civilizações nela se estabeleceram, pois do que trata esse episódio de Cain e Abel nada mais é do que a eterna luta entre o povo de Israel, pastores nômades na sua origem, contra os povos palestinos, muitos deles já gregários, praticantes da agricultura quando os rebanhos de Abraão e sua família chegaram lá; e com certeza, os palestinos não se sentiram nada alegres com a chegada dos rebanhos dos israelitas às suas paragens. Agricultura com pastoreio não combina em lugar algum, e os conflitos, nesses casos, são inevitáveis. E eles se tornam de tal forma tradicionais, passe o tempo que passar. E mesmo que os povos que lhes deu origem não mais vivam dessas atividades econômicas, o ódio entranhado entre eles continua a gerar conflagrações como as que hoje presenciamos naquela terra, onde se diz que Jeová primeiro colocou os seres humanos para viver.
Por outro lado, se entendermos que Cain é o símbolo do mal que foi posto no mundo pelo pecado de Adão e Eva, podemos inferir que Jeová é inimigo da ciência e do conhecimento, pois será da estirpe de Cain que sairão os mestres que ensinarão aos homens as suas primeiras ciências. E é dessa sorte que podemos ouvi-lo falando com Cain e dando a ele as justificativas para as suas atitudes, que até então Cain não havia entendido. “Pelo pecado dos teus pais o conhecimento do bem e do mal entrou no mundo. Eu fiz o homem para que ele servisse como imagem minha na terra. Dei-lhe todos os meus atributos, para que ele vivesse como os anjos no céu e pudesse ser alguém com quem eu pudesse me comunicar. Porque eu me sentia muito só na minha onipotência. Mas o homem preferiu ouvir a voz do meu opositor e escolheu a sabedoria do mundo ao invés de permanecer puro e sagrado. Na arrogância da sua sabedoria, os teus descendentes me negarão e se afastarão de mim cada vez mais á medida que forem descobrindo como funcionam as leis que regem o universo.” “Então”, perguntou Cain, “porque deixastes que eles comessem desse fruto se tu és Deus e estava no teu poder impedir que isso acontecesse? Devo crer que não és tão poderoso assim, que não consegues nem evitar que uma simples ação do homem seja impedida?” “A sabedoria que os homens adquiriam não será em si mesmo um mal,” respondeu Jeová, “mas o que fizerem com ela sim. Porque ela excitará o orgulho, a ambição, o anelo pelo poder e a arrogância do seu pretenso saber serão os atributos que disputarão a alma do homem com aqueles que eu lhes inspirei quando o fiz.”
“Ainda que eu viva eternamente” disse Cain, “jamais entenderei os teus propósitos. Fizestes o homem para ter um companheiro com quem pudesses se comunicar e amenizar tua solidão; e destes a ele todos os atributos que tu mesmo possuis, porque através dele serias conhecido e amado. E depois deixastes que ele se afastasse de ti permitindo que ele adquirisse a sabedoria que os faz pensar que são deuses iguais a ti. E sabes que quanto mais sábio o homem se tornar ele mais se afastará de ti. E tu, ao invés de ensiná-lo a aproveitar essa sabedoria para aproximar-se cada vez mais de ti, permite que ele a use para o mal e se afaste ainda mais. E por isso o castigas com uma eterna vingança que o impedirá de, um dia, encontrar a paz. O que enfim , pretendes com tudo isso?”
“Eu sou quem eu sou” respondeu Jeová, “ e os meus motivos não precisam ser justificados. Por isso eu sou Deus.”
E Cain viu então que não adiantava continuar nesse embate pois logo percebeu que Deus não iria se rebaixar a ponto de explicar e justificar as razões pelas quais ele faz as coisas ou deixa que elas aconteçam da forma como acontecem, muitas vezes de maneira inexplicável ou até mesmo tenebrosas do nosso humano ponto de vista. E que não adiantava tentar entender os desígnios de Deus, pois se ele tem razões que os amparam ele não diz a ninguém, conquanto muitos há que afirmem saber qual é a sua vontade e justifiquem os seus próprios atos, muitas vezes criminosos, com essa pretensão. E foi então que Deus, com seu dedo indicador desenhou na testa de Cain a letra Tau, que representa a gnose, ou seja, um anseio da alma humana na sua busca por um conhecimento que o leve ao plano divino.
Com essa letra na testa, que é a marca do conhecimento profano, Cain deixou Haviláh, a terra dos seus pais, em direção ao oriente do Eden, para a terra conhecida pelo nome de Nod, também conhecida como Senaar, onde, segundo consta, constituiu família e construiu uma cidade.
(continua)