Enquanto Cain vivia as suas aventuras na terra de Nod, desfrutando, agora sem culpa nem escrúpulos de consciência do prazer que Lilith lhe concedia na mesa e na cama, e principalmente consciente de que a ruptura com Jeová era definitiva e necessária, porque segundo ele agora entendia, o próprio Deus assim o queria, a vida de Adão prosseguia sem muitas intercorrências dignas de nota. Nesse interim, que podemos contabilizar como algumas centenas dos nossos anos, ele e sua esposa Eva tiveram vários filhos. O único que teve o seu nome registrado foi, como sabemos, Seth, que por suposto foi gerado por concessão especial de Jeová para consolar o casal humano da perda do seu segundo rebento, o guapo Abel. Isso se compreende pelo fato de que naqueles tempos não haviam os cartórios onde os rebentos das famílias eram registrados e nomeados e por conseguinte não sabe quantos filhos mais Adão e Eva tiveram nos seus longos períodos de vida. Sabe-se, no entanto que foram vários, mas das suas vidas pouco, ou praticamente nada se noticiou, talvez por que não fosse interessasse registrar seus feitos, o que se compreende quando se trata de gente que nenhum protagonismo assumiu na vida. Agora, Seth talvez tivesse o seu nascimento assentado no Livro porque se queria dar a ele a primazia da árvore genealógica do povo que o escreveu. Cuidados bem justificados, porquanto não se podia dar a Cain esse papel porque desvirtuaria toda a história que se pretendeu criar para justificar a saga de um povo que se pretende ser o queridinho de Jeová. Mais não se informou sobre essa família dos princípios a não ser que Adão morreu com 930 anos, e ficamos a imaginar como seria um homem com essa provecta idade e como, depois de gerar Seth com 130 anos, foi ainda capaz de fazer outros tantos filhos depois disso. Mas a se crer que esses eram tempos diferentes tudo pode ser. Afinal, temos que entender que estamos numa época em que Descartes ainda não havia nascido e ninguém pugnava por critérios de lógica para explicar as coisas e assim dá-se por aceito que nesses tempos as pessoas viviam por muitos séculos e se mantinham férteis e viris até a mais avançada idade.
Ainda assim, convenhamos que 930 anos é muito tempo, e nesse intervalo, se pensarmos com a cabeça de hoje, poderíamos dizer que muitos povos e reinos nasceram, desenvolveram-se e desapareceram, alguns deles não deixando nem traços da sua existência. Destarte, podemos dar tratos à bola e imaginar que nesse meio tempo muita coisa aconteceu na vida de Adão e Eva porquanto as gerações que saíram do seu filho Seth foram todas registradas pelos compiladores do Livro, o que nos leva a crer que eles tinham algum tipo de memória cartorial a sua disposição, pois se computarmos o número de anos que cada um viveu chegaríamos a alguns milhares e ninguém consegue se lembrar de coisas tão antigas sem os devidos registros à mão. Assim é que se registrou que Seth tinha 105 anos quando gerou o primeiro neto de Adão, um menino que recebeu o nome de Enos. E depois, vivendo por mais 807 anos gerou outros filhos e filhas, que por suposto, considerando todo esse tempo de vida fértil, devem ser muitos. Consta que Seth morreu com 912 anos, e certamente deve ter visto netos, bisnetos, trinetos e tataranetos e mais, porquanto está escrito que seu primogênito Enos gerou o seu primeiro neto aos 90 anos, um menino chamado Kenan, e depois disso fez outros muitos filhos e filhas e morreu com 905 anos. Na terceira geração de Adão vamos encontrar o primogênito de Enos, Kenan, aos 70 anos, gerando um menino chamado Malahael, que por sua vez, com 65 anos, gerou Iered. Kenan morre com 910 anos e Iered com 962, depois de gerar Enoque aos 162 anos. Na continuidade da linhagem de Adão, através de Seth, depois de Enoque, iremos encontrar o homem que alcançou a idade mais provecta do mundo, o vetusto Matusalém, que viveu inteiros 969 anos antes de morrer, e além de Enoque também gerou outros muitos filhos. E não sabemos por que cargas d’água se diz que Enoque, depois de gerar Matusalém aos 65 anos, viveu apenas mais 300 anos e sumiu de repente, segundo o que se disse na época, abduzido por Deus, que o levou para as dimensões celestes em vida mesmo. Aliás, são essas estranhas interpolações que levam muitas imaginações a dar por certo que a terra, amiúde, tem sido visitada por seres extra terrestres, que abduzem seres humanos para fazer experiências de laboratório, e mais adiante ainda , que a nossa espécie teria sido resultado de umas dessas experiências feitas por esses exploradores do espaço, que aqui chegaram como Colombos espaciais, e com as tecnologias avançadas que dominavam, inseminaram em fêmeas de uma espécie de símios a semente que resultou no ser humano.
Isso, como todo o resto, pode ser. E todas as especulações estão abertas quando se trata de uma história como esta. O fato é que o provecto Matusalém morreu com 969 anos depois de gerar a Lemeh, com 187 anos, e Lemeh, por sua vez, porquanto não se dá nenhum lapso de virilidade nos homens desse rosário de gerações, quando estava na flor dos seus 182 anos deu vida ao nosso velho e conhecido Noé, a quem, segundo se consta, devemos a continuação da nossa espécie. Consta que Lemeh viveu 595 anos e Noé, seu primogênito, já estava nos seus 500 anos de idade quando gerou os três galhos da árvore genealógica da nova humanidade que Jeová fez nascer na terra depois de cumprir a promessa que havia feito a Cain, exterminando a raça que lhe deu origem, depois de sete gerações.
Sim. Porque, se lembrarmos bem, Jeová prometera a Cain que seu crime seria vingado sete vezes. Dê-se por curioso esse fato, mas se contarmos o número de gerações de Cain, até o fatal desenlace da sua morte, encontraremos justamente sete. E depois dela consta que nenhuma geração mais, da sua cepa, se levantou até que o Senhor fizesse derreter as calotas polares e provocar uma chuva intermitente de quarenta dias e noites para cobrir a terra com água e liquidar toda a vida que nela existia. Coisa difícil de entender essa, porquanto Deus, que é Deus e tudo pode, ao destruir simplesmente a humanidade que ele mesmo criou, ou deixou que existisse, passa um atestado de incompetência e diríamos, até de mesmo de infantilidade, agindo como uma criança que de repente descobre que o brinquedo que ela fez não lhe agrada mais e resolve destruir o que fez para começar a fazer tudo de novo.
Mas para quem gosta de especulações menos canônicas diríamos que Lemeh, ao estipular que se por Cain se tomará vingança após sete gerações e por Lemeh após setenta vezes sete, não estaria o velho patriarca profetizando a ocorrência do dilúvio, porquanto se verifica que tal fato teria ocorrido exatamente após sete gerações depois de Cain? Quanto às setenta e sete que passarão até que o crime de Lameh seja vingado há quem diga que ela se refere ao momento fatal em que Deus finalmente dará um fim à humanidade, dia que está chegando e talvez já esteja à porta, considerando que setenta vezes sete perfazem 490 e se considerarmos o lustro de 20 anos para cada uma teremos 9800 anos, o que nos parece um número bem aproximado para medir o tempo desde que essas coisas aconteceram até os dias de hoje. Não sendo nós nenhum Nostradamus para calcular e profetizar sobre os acontecimentos, já que não sabemos como usar os métodos da gematria cabalística, ficamos com a ideia de que o número sete ― que, como já dissemos, exerce uma especial atração mística sobre o espírito do povo que escreveu o Livro, já que tudo ali se toma por ciclos medidos pelo número sete ― essa seria apenas uma superstição engenhosa desse estranho povo.
Antes de retomarmos o fio dessa meada, queremos registrar um pensamento que nos ocorreu nesse entremeio. O leitor mais atento deve ter observado que toda a genealogia humana aqui aparece registrada sempre pelo lado masculino. Isso denuncia a existência de um rematado chauvinismo na história dessas origens, o que explica as razões que contra o Livro se levantam de que ele, além de ser um relato das piores qualidades do homem, ter se revelado um manancial de argumentos em favor da submissão da mulher na história das sociedades. Essa é razão de uma guria como Lilith, por exemplo, não ter sido citada como protagonista nela, e a todas as demais mulheres que nela aparecem, com raras exceções, lhes serem atribuídos papéis nada virtuosos, como a Dalila que traiu Sansão, a Jezebel que foi devorada pelos cães, as perversas Salomé e Herodias, que foram responsáveis pela degola de João Batista, e outras do mesmo quilate. E essa genealogia, que atribui a Seth a origem do povo que escreveu o Livro, em nenhum lugar cita as mulheres que deram curso a essa cepa, o que seria de justiça fazer, porquanto sem elas os renomados varões dessa epopeia sequer teriam existido. Por outro lado, nota-se que, da estirpe de Cain, pelo menos as duas mulheres, Ada e Silah, que deram luz aos filhos de Lemeh, o homem que foi o pai dos iniciadores da ciência e das artes, os inefáveis Jubelos das lendas maçônicas, Jubal, Jabel e Tubal Cain, tiveram seus nomes devidamente registrados. O que dá supedâneo às teses dos adversários do povo que escreveu o Livro, que dizem ser essa narrativa mais uma disfarçada peça midiática para justificar suas reivindicações sobre a terra palestina do que propriamente uma história com pé e cabeça da origem da humanidade.
Deixemos, entretanto, essas demonstrações de preconceito que o Livro apresenta e voltemos no tempo em nossa crônica para observar Cain em sua nova vida junto com Lilith na terra de Nod. Vive ele muito bem porquanto Lilith, sendo a rainha daquela cidade, consentiu, logo que Cain passou a morar com ela no palácio, que ele a rebatizasse com o nome do filho que Lilith carregava no buxo e logo iria nascer. Enoque, o nome que seria dado ao menino, passou a ser nome daquela cidade, que nas tabuinhas de argila em que essas histórias foram registradas primeiramente, é chamada de Eridu, a cidade dos filhos de Enki, o deus que veio do céu para trazer a civilização para os pobres e ignorantes terráqueos. Enoque daria continuidade à geração de Cain, gerando, com escassos 20 anos naquela época, a um filho a quem chamou Irad, o primeiro neto de Cain, tido como um sujeito chucro e indomado, um verdadeiro burro selvagem.
Á geração de Cain, Irad deu continuidade gerando Mehuiael, cujo nome significa aquele que ataca Deus, o que faz pressupor que a malfadada família de Cain se afastava, a cada geração, ainda a passos mais largos dos estatutos de Jeová, o que justifica a saga que para ele se prevê. E esse Mehuiael gerou Methusael, aquele que está sempre pronto para o combate, ou o despachado, como querem outros que o nome signifique, o que para nós pouco importa, pois o que fica mesmo desse personagem é que ele foi o pai de Lemeh, aquele que viria dar um fim à vida de Cain, apesar da marca que Deus tinha aposto na testa dele, e que por suposto era para que ninguém o matasse.
Depois dessas considerações, que fizemos para não precisar voltar a elas para dar foros de continuidade a essa história, recuemos até a cama de Lilith, onde Cain experimenta todos os prazeres da volúpia e dá ampla liberdade à sua recém descoberta libido para que ela alce os voos mais ousados que um desejo pode fazer. Lilith é a fêmea perfeita que conhece todos os caminhos do prazer. Ela mesma toma as rédeas do coito, cavalgando o macho, buscando ela própria o seu momento de orgasmo, que só ocorre na justa medida em que Cain está tendo o seu. E Cain nada precisa fazer além de seguir os movimentos dela, para cima e para baixo, até que ambos, molhados do suor que lhes vêm, menos do esforço que fizeram para chegar ao clímax e mais pelo calor que seus próprios corpos exalam por conta do fogo da volúpia que os consome, quedam-se, exaustos, um nos braços do outro, para depois de um breve descanso recomeçar tudo de novo.
Certo está que não se encontrarão em nenhuma das crônicas consideradas canônicas, nem se dá notícia naquelas que se chamam apócrifas, quaisquer referências a esse tórrido romance entre o amaldiçoado Cain e aquela que foi apodada depois como a mãe dos demônios, a insaciável Lilith. Esta, que poderia ter sido a mãe de Cain, mas ao invés acabou sendo a sua amante e mãe do seu filho Enoque, só vai aparecer em esparsas citações, umas oficiais, outras apócrifas, sempre como um demônio fêmea, e não como a verdadeira mãe da humanidade civilizada, como de fato ela o foi. A essa ausência de notícias a esse respeito entende-se perfeitamente, porquanto o que sempre se quis, nessa história, é justificar porque certas coisas têm que ser assim e não de outra forma. E o que se quer mesmo com tudo isso é dar fumos de direito à razão do porque se deve atribuir a um povo em particular a semente do bem e a outro a semente do mal. Destarte, a genealogia de Cain, a quem se atribui o início das ciências e do conhecimento ficou com a pecha do mal e a geração de Seth, a quem se atribui a pureza do espirito e a futura escolha como a nação do Senhor foi dado o emblema do bem. E dessa matéria prima se constrói uma história que dá contornos à nossa vida até hoje.
(continua)