A Sagrada Sinfonia Universal
Como já dissemos em outra parte deste trabalho, a Maçonaria espiritualista trabalha com muitas inspirações da Cabalá, temperadas por um forte apelo à filosofia gnóstica e pitagórica. Nela também encontraremos fumos de neoplatonismo, associado a um expressivo componente de hermetismo, pitagorismo e rosacrucianismo, este último identificado pelas constantes invocações ao magistério alquímico, cuja proposta de transformação espiritual informa a própria ideia de aprimoramento espiritual que a Maçonaria adota. E na sua estrutura filosófica percebemos igualmente uma forte inspiração estoica, como veremos no decorrer deste nosso ensaio.
Uma das ferramentas adotadas pelos maçons para ancorar a sua prática, quando das seções em Loja, é a música. Todas as seções são acompanhadas de melodias apropriadas. Tanto que no quadro de Oficiais da Loja é necessário a presença de um Mestre de Harmonia, para cuidar da trilha sonora que acompanha os trabalhos.
Essa prática maçônica também encontra sua repercussão na doutrina cabalística. Segundo Isaac Lúria, um dos mais eminentes cabalistas de todos os tempos, a Cabalá é um comentário esotérico da Torá, que incorpora citações de ideias do misticismo judaico, que são imprescindíveis para uma perfeita compreensão dos textos bíblicos.
Ele tem razão. A Cabalá é isso é muito mais. Ela tanto é um verdadeiro poema da Criação, elaborado pelos mestres da religião judaica, quanto uma sinfonia mística, onde o som e a palavra são combinados para fornecer ao leitor uma espécie de enlevamento superior que se equipara a um êxtase espiritual.
Talvez mais que um poema, a Cabalá é uma viagem espiritual pelas dimensões sutis do universo, onde brilha a Glória de Deus na forma de uma Luz Infinita. É por isso que Jorge Luis Borges dela disse tratar-se de uma metáfora do pensamento que pode servir-nos para pensar e compreender como o universo é feito e funciona.
Isso se dá porque os textos cabalísticos foram compostos a partir de uma antiga tradição da cultura religiosa hebraica que combina a técnica da meditação profunda sobre o significado de determinada palavra, com a trilha de uma melodia. Pois segundo acreditavam os mestres dessa antiga tradição, a Palavra de Deus tem uma vibração especial, uma espécie de entonação cósmica, em cujas notas a matéria universal vai tomando forma e se organizando, como se fosse uma sagrada sinfonia.
É muito interessante essa intuição porquanto ela também aparece em outras culturas antigas, que viam na vibração sonora das palavras uma forma de comunicação com as esferas sutis do universo, onde estariam os alicerces do mundo físico e o estofo da nossa própria vida espiritual. As culturas orientais, como a hindu e a chinesa, por exemplo, têm palavras com vibrações especiais, como a sílaba OM, cuja pronúncia, em sua forma melódica, tem a propriedade de estabelecer equilíbrio entre a mente e o sistema nervoso, facilitando a meditação.
Por outro lado, as especulações de Aristóteles a respeito da música na composição do mundo físico vão no mesmo sentido. Uma prova de que a sua intuição estava correta vem das descobertas feitas pelos cientistas a respeito da origem da matéria física que compõe a massa universal. A sua relação com o fenômeno da sonoridade parece ser uma realidade incontestável, como pensava o famoso filósofo grego.
Várias pesquisas conduzidas por cientistas de renome mundial encaminham nosso pensamento nesse sentido. Uma dessas especulações, hoje aceitas por boa parte dos cientistas que estudam essa matéria é a chamada Teoria das Super Cordas, primeiramente proposta por Edward Witten no início dos anos oitenta e hoje aceita por boa parte dos cientistas.
A Teoria das Super Cordas
Grosso modo, essa teoria diz que no nível mais simples da matéria, as partículas fundamentais que a constitui são resultados de vibrações sonoras. Elas não se parecem com objetos pontuais, mas têm aparência de pequenas cordas vibrando no espaço-tempo. Diversas partículas podem aparecer como diferentes formas de vibração, mas todas estão incluídas na mesma descrição. Acredita-se que a forma fundamental delas, de onde todas surgem como modos vibrantes seja muito pequena, da ordem de 10-33 cm, o que justificaria o fato de não conseguirmos, mesmo com a utilização dos mais modernos aparelhos, uma prova material direta de sua existência. O número 10-33 cm é uma fração que representa um volume tão pequeno, da ordem de 1/10000000000000000000000000000000 de centímetro, um tamanho tão ínfimo que impossibilita a sua detecção. Só para comparar, o raio de um próton mede 10-13 cm e essa partícula já apresenta uma extrema dificuldade para observação.[1]
O que essa teoria sugere é que os blocos fundamentais de energia (ondas e partículas) que estão na base de toda a matéria universal não são puntiformes, como minúsculas esferas, como antigamente se acreditava, mas assemelham-se a fios e membranas, e que a energia que elas produzem emerge como resultado de suas vibrações, como se fossem cordas tencionadas de um instrumento musical. Isso quer dizer que em escalas muito pequenas, inferiores ao tamanho do núcleo atômico, toda a matéria pode ser descrita pelos modos vibracionais de pequenas cordas fechadas. Esses modos vibracionais, também conhecidos como harmônicos, surgem quando duas ou mais ondas de energia encontram-se em um mesmo ponto, produzindo ondas estacionárias. Exatamente da mesma forma como produzimos notas musicais ao tocarmos um violão.
O renomado físico teórico Michio Kaku, explica assim esse fenômeno: "Hoje podemos dizer que todas essas centenas de partículas subatômicas que obtemos rompendo prótons no Grande Colisor de Hádrons não são nada mais que notas musicais, como imaginava Pitágoras."[2]
O que ele diz é simplesmente que se tivéssemos um super microscópio capaz de nos mostrar um “quanta”, o que veríamos é algo semelhante a um elástico de papelaria, circular, vibrando. Se ele vibra de uma forma, temos um elétron. Se vibra de outra maneira, temos um neutrino. E se ele vibra de uma outra forma, teremos um quark. É o mesmo elástico produzindo as partículas que dão origem a tudo que existe no universo, diz Kaku, e elas se assemelham a notas musicais. [3]
Essa teoria é nova e só apareceu no século vinte como resultado do desenvolvimento dos estudos sobre a intimidade do núcleo dos átomos e da energia que ele contém. Mas revolucionou o estudo sobre o comportamento da energia que está na origem da matéria universal e está fazendo muitos cientistas se voltarem para as intuições dos taumaturgos e cabalistas, que há muitos séculos atrás já vinham dizendo coisas parecidas com essas que as pesquisas modernas estão revelando.[4]
Especialmente a intuição dos mestres cabalistas que deram origem aos textos contidos no Zhoar. Há muito tempo que eles vêm dizendo algo parecido com o que os cientistas da física quântica andam descobrindo agora. É como o rabino Ariel Benson diz em seu prólogo à edição que elaborou do Zhoar. “Há passagens no Zhoar”, diz ele, “que são enlevantes em forma, ritmo, pensamento, simplicidade e beleza, como se estivessem além de qualquer comparação com os preceitos ditados para a observância da religião, que é a adoração instintiva daquele Algo Divino que está em tudo.”[5]
Quer dizer: esse enlevo, ritmo, beleza e arrebatamento espiritual só mesmo se encontram em uma sinfonia onde o compositor consegue entrelaçar sua alma individual como a Alma do Cosmo e com ela combinar os acordes. Nessa intuição está baseada toda a estrutura dos Salmos, exemplo, que são poemas religiosos compostos ao som de uma lira, para serem lidos com entonação melódica. E nela também se funda o valor profilático da oração e a melódica ritualística que a religião judaica impõe a ela. Por isso, continua Benson, “o Zhoar era um livro para ser lido em todas as ocasiões, de festa ou de lamentações, de nascimento ou de morte.” Quer dizer, foi escrito como um longo poema místico para ser visto mais pela ótica do sentimento do que da razão, e assim mesmo, só absorvido quando a entonação melódica do verso encontrava uma simbiótica ressonância na alma do orador e do ouvinte.
Pensamos que com isso podemos justificar a necessidade da música em todas as demais reuniões realizadas pelas mais diversas confissões religiosas, onde a vibração de notas musicais se faz presença necessária para garantir a harmonia do ambiente.
A poesia da Cabalá
Como diz o filósofo espanhol Miguel de Unamuno no prólogo à edição do Zhoar elaborada pelo rabino Ariel Benson, aqueles que estudam a Cabalá estão livres dos grilhões impostos pela lógica do pensamento civilizado e das imposições da linguagem codificada, que limitam a mente humana a uma atividade que não passa de cinco por cento da sua capacidade potencial. Isso porque o Zhoar liberta o homem da dependência da ciência do bem e do mal, que ele define como poder/dever. E nesse sentido, abre a possibilidade de o homem buscar a união com Deus sem intermediação nem ritualismo.
Quem consegue imergir na leitura do Zhoar sem os óculos da lógica cartesiana consegue ver a beleza de suas concepções, sem achar que são apenas um conjunto de sonhos delirantes medrados na solidão de mentes tomadas pela superstição e domesticadas pelo culto ao fantástico. Porque para apreciar essa beleza é preciso deixar a sua mente navegar por mares distantes do material e do concreto e penetrar no mundo do espírito, onde as cores do pitoresco ofuscam olhos que só conseguem ver o cinzento de uma vida informada apenas pela realidade cotidiana. Isso porque a Cabalá é, na verdade, uma aventura onírica da qual nunca se volta com o mesmo espírito da partida.
No Zhoar fundem-se a poesia, a filosofia e a religião. Não a filosofia que se conforma em teoremas e silogismos, mas sim a filosofia fluída e não poucas vezes vaporosa do hermetismo, que substitui a lógica pelo sentimento e se liga mais pelo coração do que pela razão. E quanto à poesia, não se trata de obra que possa ser enquadrada em alguma escola literária, mas algo muito mais livre, talvez próxima ao surrealismo dadaísta, ou das intuições da psicologia da Gestalt.[6]
A dança da Luz
A Luz do Criador dança no infinito e nossas almas precisam acompanhá-la em sintonia para que ela reflita em nós todas as suas possiblidades de Criação. Quando essa harmonia for alcançada pela humanidade em conjunto, a Obra de Deus terá atingido a sua finalidade e os seres humanos, como seus pedreiros, alcançarão aquela plenitude que toda tradição religiosa chama de Paraíso, ou Éden, onde serão novamente revestidos daquela “roupa” espiritual que ostentavam quando seus ancestrais foram criados.
Por isso é que Pitágoras (c. 570 a.C - 493 a.C), desenvolveu uma teoria relacionando a música ao funcionamento do universo. Para ele havia no infinito cósmico uma melodia que precisava ser ouvida se nós quiséssemos entender como o universo funciona, A cosmologia grega da sua época imaginava um mundo ordenado a partir de uma série de esferas, cada uma governada por uma deidade. A terra ficava no centro dessas esferas concêntricas e para ela convergiam todas as vibrações sonoras emitidas pelos deuses na sua atividade de pensar.
Pitágoras acreditava que havia uma relação numérica entre as esferas e essa relação era a responsável pelo equilíbrio entre elas, promovendo a harmonia. Mesmo que esses sons não pudessem ser percebidos pelos nossos ouvidos, eles podiam ser sentidos pela nossa alma, porque revelavam a harmonia fundamental do universo.
Platão (423 a.C. - 348 a.C) e Aristóteles (384 a.C - 322 a.C) também acreditavam na existência de uma harmonia sonora na dança da Luz que dá vida ao universo. Só que eles, ao invés se preocuparem com a origem e a compostura dela, tentaram entender mais os efeitos que ela tinha sobre a sociedade. Tanto que Platão, no terceiro livro da República, tentou especificar o tipo de música ideal para um homem virtuoso.
Isso mostra o quanto esse grande filósofo acreditava na influência da música sobre a vida humana, porque achava que ela seria capaz de modelar uma alma para o bem ou para o mal, conforme a sua utilização.
Voltando à Cabalá e sua relação com a música, no sentido de que todos os versos do Zhoar são composições para serem lidas com entonação musical, podemos entender o porquê de todas as tradições religiosas terem na música um momento de fundamental importância em suas liturgias.
E no que diz respeito à Maçonaria, além do já citado costume de manter, nas reuniões da Loja, um mestre de harmonia para cuidar da parte musical, temos também nos graus filosóficos um capítulo que trata especificamente desse tema, como um dos mais importantes ensinamentos do currículo maçônico. É o trigésimo grau do Rito Escocês Antigo e Aceito. É um grau que se refere às chamadas Artes Liberais, como era conhecido, na Idade Média, o currículo de disciplinas que um estudante deveria aprender para entrar em uma universidade. Servia como preparo obrigatório para todos aqueles que quisessem tornar-se doutor, mestre, filósofo, ou seguir carreira em qualquer outra profissão de nível superior.
Essas atividades eram divididas em dois corpos distintos, chamados trivium, que compreendia a retórica, a gramática e a lógica, e o quadrivium, que reunia a aritmética, a música, a geometria e astronomia. A utilização dessas disciplinas para preparo dos estudantes de nível superior já vinha desde os tempos de Aristóteles, que as utilizava em sua famosa Academia. Durante o Império Romano elas também tiveram larga aplicação no ensino dos romanos bem educados, como informa Sêneca em sua obra de Tranquilitate Animi.
Por isso completamos essas informações com o nosso soneto abaixo transcrito:
A música de Deus
Se você puder abrir seu coração,
E verificar se a noite está calma;
Receber a luz, aceitar a emoção,
Deixar o cosmo falar à sua alma;
Talvez, trazida pela voz do vento,
Possa ouvir a música da Criação,
Onde Deus toca um instrumento
Do qual a natureza é o diapasão.
Através dela Ele ajusta a sintonia
Do mundo nascido em confusão,
E põe nele um tom de harmonia.
Porque no fim, é o nosso destino,
Nos reunirmos, um dia, no salão,
Onde Ele afina e toca seu violino.
[1] REVISTA USP, São Paulo, n.62, p. 200-205, junho/agosto 2004
[2] Matéria publicada pela BBC News-Brasil em 26 outubro de 2001.
[3] Na imagem, o físico norte americano Michio Kaku-Fonte: Wikipédia Fundation
[4] Abdalla, e. & Casali, a. g. “Cordas, Dimensões e Teoria M”, Scientific American, Brasil, março de 2003. REES, M. Before the Beginning.
[5] Zhoar- O Livro do Esplendor, citado, pg. 54
[6] O Dadaísmo, ou simplesmente “Dadá” (linguagem de bebê), foi um movimento artístico desenvolvido por artistas europeus (franceses, principalmente), na primeira metade do século XX, cujo lema dizia que destruição também é criação". Foi o movimento propulsor das ideias surrealistas e tinha um caráter ilógico, anti-racionalista e de protesto. A Gestalt é a chamada psicologia do todo, ou teoria da forma. É uma doutrina que defende a ideia de que o todo é sempre maior que suas partes, pois cada vez que olhamos, ou pensamos em um objeto, estamos interferindo na sua estrutura em razão da nossa interação com ele. Assim, para se compreender as partes, é preciso, antes, ter uma visão do todo.
[7] O Parto de Deus- A Bíblia em Sonetos, 2015.Na imagem, uma alegoria da música das esferas, gravura de Agostino Carracci a partir de um original de Andrea Boscoliu. Fonte: Wikipédia Foundation- Sobre as Sete Artes Liberais no currículo maçônico veja-se a nossa obra Mestres do Universo- Biblioteca 24x7- 2015