Do que se narra nessa história que se tornou a fonte de todas as nossas crenças, consta que Adão levantou-se do seu molde de barro, segundo a visão que nos orienta, limpo, prontinho, com uma pele lisa como um pergaminho raspado, e bonito como um anjo, como de fato se informou, que ele foi feito à imagem e semelhança dos seus angélicos pais Elohins. E podemos imaginar como teria sido a cara que ele fez ao se levantar e ver a si mesmo num espelho de água, como Narciso teria feito, segundo diziam os gregos, como uma criatura tão diferente daquelas que pareciam ser da sua espécie, seres peludos, que andavam meio encurvados, ora usando só as pernas, ora usando pernas e mãos e eram desprovidos da capacidade de articular palavras, porque só conseguiam emitir uns grunhidos ininteligíveis.
Claro que Elohim, sendo quem era, o Senhor Supremo do Universo, poderes tinha para fazer o homem Adão do jeito que se diz que foi feito. Tudo pode ser. Mas há quem diga que a criação do homem não foi exatamente assim que aconteceu, mas sim através de uma operação cirúrgica bem menos insólita do que essa que é narrada nas crônicas oficiais. O nosso Adão, na verdade, seria resultado de uma experiência genética realizada por seres extra- terrestres que aqui aportaram há cerca de trinta e cinco mil anos atrás e deram início à raça humana praticando operações de mutação genética em espécies semelhantes ao homem, mas ainda não tão evoluídas para serem consideradas humanas.
Essa notícia não saiu do nosso bestunto, mas sim de outras tantas fontes não tão canônicas como às que foram tidas como autênticas, mas se levarmos em conta que toda a história humana é apócrifa, não custa admitir a possibilidade de que o casal humano tenha sido obtido a partir de uma operação bem menos taumatúrgica do que aquela que o referendado conto da criação fala. Pois que, na verdade, segundo essas fontes, o que Elohim Deus fez para criar Adão foi uma operação de mutação genética chamada na língua suméria de shipubel inti, espécie de cirurgia que está registrada na literatura daquele povo em tabuinhas de barro que ainda hoje podem ser lidas em vários museus do mundo. Nessa versão o ermo Elohim designaria um grupo de deuses-astronautas que chegaram à terra para iniciar aqui uma colônia. E em aqui chegando, pegaram um macho de uma espécie de símio já bastante avançada em sua evolução biológica e nele fizeram uma operação de mutação genética. Misturando os genes desse, que os acadêmicos chamam de homus erectus, que ainda podia ser considerado um animal, com os genes de um ser da sua própria espécie, os elohins, obteve-se como resultado o que se chamou de homo sapiens. Daí se dizer que o homem é um ser intermediário entre um anjo e um ser humano, um misto de profano com sagrado, uma criatura vivendo entre o céu e a terra, sem saber a que mundo, de fato, pertence.
Tudo pode ser. Afinal, não precisamos ver em Deus um mistagogo no exercício da sua profissão de ilusionista, transformando bonecos de barro em pessoas humanas. Isso faziam os mestres cabalistas com seus goléns, mas de Deus podemos esperar coisas mais elaboradas e críveis do que passes de mágica e misteriosas prestidigitações. Por vias bem mais processuais, lógicas e verossímeis, que hoje até mesmo os homens já podem realizar, ele bem que podia exercer suas habilidades de engenheiro genético e fazer uma operação dessas sem provocar nenhuma perplexidade. E bem pode ser que foi isso que ele fez, o que justifica todas as teorias que se levantaram a respeito desse ainda espesso mistério que é a origem do homem e a sua evolução, até transformar-se nesse caniço pensante que ele é, como o definiu um renomado filósofo.
Que antes de sermos o que somos já fomos algo diferente parece que está provado pelas pesquisas acadêmicas que dão conta de muitas etapas anteriores na saga do homem sobre a Terra. Não temos necessidade de crer numa narrativa mais do que nas outras, mas causa-nos espécie que o protótipo do homem figurado pelo Adão que nos foi apresentado tivesse nascido em um determinado lugar do planeta e não em outro. E que certo grupo humano tenha sido escolhido para evoluir e outros não, de forma que até hoje ainda encontraremos em muitos lugares do planeta pessoas tão inocentes e sem conhecimento do bem e do mal como se diz que era o casal humano antes do propalado episódio que ocasionou a queda do homem em razão da comilança do tal fruto do conhecimento.
Sem dúvida fica mais fácil para a nossa cabeça ver o nosso papai Adão levantando-se, ainda meio tonto pela anestesia, de uma mesa de cirurgia, rodeado pelos seres (agora que sabemos que o nome Elohim também designa uma coletividade de seres de origem celeste), que fizeram a operação e os outros que apenas assistem, que, diga-se a bem da verdade, era ainda experimental. Disso sabemos porque o próprio registro que dá conta dessas peripécias diz que os autores dessa proeza, ao confabularem para fazer a dita operação, disseram: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, assim mesmo, no plural, o que mostra que tal operação não foi realizada por uma pessoa só, se é que podemos chamar Deus, ou os nossos angélicos mestres elohins de pessoa.
Destarte, a não ser que se considere como uma falha gramatical do redator desse episódio, que por suposto teria usado uma duplicidade de pronomes na sua redação, tomando por plural o que devia ser singular e coisas tais, temos que dar por certo que Deus teve companhia nessa operação, porque no mesmo registro vamos encontrá-lo dizendo coisas tais como “Eis que o homem se tornou um de nós”, o que faz supor que ele não estava só nessa empreitada. E a não ser que se compute a ele a tolice de falar sozinho, que é coisa de doidos, e isso não se pode dizer dele, o que fica dessa informação é que o homem, seja qual for a forma pela qual tenha sido feito, não foi obra de uma entidade só. E com isso pode-se dizer também, para pôr mais molho nessa salada, que se o homus erectus é um produto da evolução, o homus sapiens, por sua vez, pode ser uma criação dos deuses, independente da forma como foi gerado.
E se recuperarmos a informação, já divulgada anteriormente, que a comunidade angélica, na verdade, nada mais é do que a própria personalidade de Elohim Deus, desdobrada em setenta e duas facetas formando uma assembleia conhecida pelo estranho nome de Shem-amphorasch, teremos de vez resolvido esse mistério e não precisaremos mais voltar a esse assunto. E assim resolvemos também de vez por todas essa dúvida medonha que o tal de Darwin e seus seguidores colocaram nas nossas cabeças com a suas heréticas teses. E dessa feita fica aqui registrada a nossa contribuição para a solução dessa polêmica e deixamos também, desde já, liberado para domínio público o uso dessa fórmula para qualquer debate que se trave sobre esse assunto. E desapegados que somos de qualquer vaidade ou ambição, nem fazemos questão de sermos citados como fonte dessa intuição, porque o que queremos não é sentar cátedra, mas apenas contribuir com mais uma estrofe para esse verdadeiro samba de crioulo doido que é a história da raça humana.
Ademais, segundo o que se informa desse nosso pretenso primeiro ancestral é que ele deveria constituir algo diferente do que já havia na terra entre os seres viventes, que nem nomes para identificá-los tinha ainda, tanto que o Senhor lhe delegou a tarefa de nomeá-los para que eles pudessem ser distinguidos uns dos outros. E dessa incumbência que lhe deu o Senhor nasceu esse princípio que os acadêmicos chamam de princípio da identidade, que diz que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, estratégia elaborada pela nossa cabeça para evitar que a gente faça mais confusão do que as que já fazemos normalmente.
Destarte, foi assim que um cavalo se tornou um cavalo, um cão um cão, uma galinha uma galinha, um sapo um sapo e todas as identidades se estabeleceram no mundo para que a ordo ab chaos se realizasse também entre as criaturas e não apenas em relação às leis naturais.
Agora, que o homem Adão era um protótipo, sabemos porque a própria crônica oficial desse fato nos dá conta que ele era uma cópia única, que não tinha semelhança com nada que havia na terra, nem usufruía da prerrogativa dada por Deus aos outros seres viventes, que era o fato de serem macho e fêmea, com organismos propícios para se unirem e produzirem crias à sua imagem e semelhança.
Segundo se infere das mesmas fontes que deram geração às narrativas tidas como oficiais, Adão, Adama, o homem da terra, não foi o primeiro dos protótipos que deu origem à espécie humana. Como já se deixou informação a respeito, havia já, por volta dessa época em que Elohim, que agora sabemos ser tanto plural quanto singular, fez nascer o homem Adão, uma respeitável civilização ocupando as terras a nascente do Éden. E essa civilização, ao que consta, tinha sido trazida de algures por seres que não eram oriundos deste planeta. Desembarcando com suas naves na planície que fica entre os dois grandes rios do Oriente, conhecida como Nod nas crônicas oficiais e de Senaar pelos próprios habitantes do país, esses seres haviam construído sete cidades na região, a partir das quais espalharam a civilização pelas terras do Oriente. Daí se dizer que criação de Adão, no caso, foi uma resposta de Elohim Deus a essa civilização, que não era do seu agrado e nem o reconhecia como Ser Supremo, a se crer nas tabuinhas de argila em que eles registravam as suas peripécias, e segundo se diz, foram as fontes nas quais os cronistas oficiais se abeberaram para escrever as suas.
Também, ao que parece, Adão foi criado andrógeno. Está escrito que macho e fêmea o Senhor o criou, o que se infere que ele tinha em seu organismo as propriedades de ambos os sexos. Confirma-se essa informação com o que consta das crônicas oficiais, que dão conta de que todas as espécies criadas tinham a sua cara metade, menos ele. O que quer dizer que todo macho tinha uma fêmea com quem podia se acasalar, o que não deve ter sido uma descoberta agradável para o recém criado ser humano, que via todos os animais procriando suas crias com prazer e ele só olhando. Não se pode colocar essa, que poderíamos chamar de falha genética no protótipo elaborado pelo Senhor, por conta de um erro de projeto, porquanto estamos falando de Deus e ele é infenso a erros. Diríamos que talvez ele tenha esquecido do próprio propósito que o levou a querer construir o universo, para que nela ele pudesse espelhar a sua majestade. Esse propósito, como sabemos, era a necessária existência de uma consciência que pudesse detectar a sua existência como uma presença real e poderosa, algo assim como uma nação de súditos que reconhecesse a sua majestade. Pois que foi em razão dessa necessidade que Elohim fez o mundo e nele pôs uma criatura com qualia necessária para dele tomar conhecimento e venerá-lo como seu Criador. Daí se dizer que Deus, na sua essência, antes de fazer o universo , vivia uma existência negativa, ou seja, era como o polo de uma corrente de energia que não podia circular pela falta do um polo positivo. E ao fazer o universo real ele gerou um polo positivo para que sua potência pudesse se manifestar, o que significa dizer que o universo é a existência positiva de Deus, que é o mesmo que dizer, o seu corpo físico.
Isso dizemos porque toda corrente energética precisa ter dois polos para poder manifestar a sua potência. Por isso, ao ver o homem que se levanta da mesa de operações, ainda tonto e perplexo com a nova aparência que lhe foi dada, Elohim Deus nota que o seu protótipo também não tem um polo pelo qual possa manifestar a sua própria energia criativa.
E dela ele precisará para cumprir o propósito para o qual foi criado. Dessa forma, indaga-se Elohim, como faria ele para crescer e multiplicar-se, enchendo a terra de criaturas solícitas e tementes a ele, como era seu desejo que fosse? Foi então que ele percebeu, diríamos, não a falha, mas a omissão desse que era um detalhe essencial na composição da obra, que diga-se, seria o corolário de todo o seu trabalho na Terra.
Disso sabemos porque, segundo consta, depois de terminada essa operação, que ele achou do seu agrado, simplesmente resolveu dar a si mesmo um descanso, o que fez no sétimo dia, o Shabbat consagrado como o Dia do Senhor, cuja deixa o homem aproveitou para também dar a si mesmo um respiro na dura tarefa de ganhar a vida, e sendo o homem o que é, aproveitou para esticar esse respiro também para o dia seguinte, o domingo.
Mas para Adão, que acabava de despertar do seu anestésico sono, podemos imaginar o que isso significava. Uma fêmea para acasalar era algo que ele não tinha e por conta disso podemos entrar na sua pele para vê-lo perguntando aos genitores que fizeram dele, não uma alma vivente como está escrito, mas uma alma consciente como seria mais apropriado dizer: "Senhor, Senhores, porque só eu não tenho uma companheira em quem possa depositar minha semente e gerar criaturas à minha imagem e semelhança?” E ele, ou eles, percebendo que, de fato, haviam omitido esse detalhe de especial relevância, pois que, vendo que todos os animais estavam se acasalando e produzindo as suas crias e o homem não, ficaram com pena dele e resolveram fazer-lhe uma fêmea para servir-lhe de adjutório para esses fins de procriação.
Que não me queiram mal as feministas por causa dessa palavra feia que foi usada para se referir à mulher, qual seja, adjutório, que parece relega-la a um papel de mera coadjuvante no processo criativo, pois que ela não é da nossa lavra, mas é exatamente assim que se fala nas crônicas oficiais e nós estamos apenas reproduzindo o que foi escrito.
Dado por certo de que as coisas se passaram desse modo, eis que foi feita a mulher, por um processo semelhante ao que foi desenvolvido para gerar o homem Adão. Só que, ao invés de misturar o barro da terra ― aqui entendido como sendo um símio em estado mais avançado de evolução genética, algo como os tais homus erectus, ou homens de Neandertal, que os acadêmicos dizem ter sido os nossos ancestrais― o que Elohim fez foi retirar uma célula do corpo de Adão, referida como sendo a sua costela, e enxertá-la no corpo de uma fêmea neandertalense. E dessa operação o resultado foi uma mulher para servir de polo para a corrente da vida que havia sido inoculada em Adão.
Fica por conta do leitor a colagem dos rótulos nas duas criaturas que assim se formam, se negativo um, se positivo outro, o que de resto pouco importa, pois que numa corrente de energia o importante é a existência de ambos para que a força desse fluxo se manifeste em toda sua potencialidade.
Poder-se-ia perguntar como se criaram essas duas criaturas assim produzidas, pois mesmo considerando-se que ambas foram obras de Deus e Deus tudo pode, não devemos, por foros de seriedade intelectual, computar ao Senhor truques de mágica, o que seria se ele já tivesse tirado dessas operações duas criaturas já adultas, maduras e prontas para dar início à família humana. E já que estamos dando a ele a chance de desvestir-se dessa capa de mistagogo que os cânones oficiais lhe deram, vamos por na sua conta que ele os criou como filhos que eram, naquele jardim que ele plantou no Oriente, na cabeceira de um rio que se dividia em quatro correntes, duas das quais eram o Tigre e o Eufrates, o que nos dá uma ligeira orientação do lugar onde esse jardim ficava.
E ele os criou na inocência de crianças postas num convento onde nenhuma notícia daqueles desejos que conhecemos como vícios entravam para compuscar-lhes a pureza da alma que se lhes havia sido inoculada quando se levantaram, guapos e resplandecentes, da mesa de cirurgia. Não entraremos nos detalhes da vida adolescente e da juventude do casal porquanto nessas calendas antigas o tempo não se conta pelas nossas medidas. Mas é de se supor, se dermos crédito às crônicas oficiais que atribuem aos homens daqueles tempos centenas de anos de vida, que alguns lustros centenários devam ter passado até que Adão e Eva tenham chegado à maturidade, já que o dia chegou em que Deus lhes disse “Eis que o homem deve unir-se à sua mulher e ser como uma só carne e o homem deixará seu pai e sua mãe para unir-se à sua mulher”.
Daí se infere que Adão e Eva foram para a cama, que devem ter armado com folhas embaixo de uma árvore (porque não se fala que no Eden havia qualquer coisa que se possa chamar de casa, nem mesmo numa árvore, como fez o Tarzan quando se embolou com a Jane) e praticaram o seu primeiro coito sem meias nem peias, como as duas criaturas inocentes que eram, sem se dar conta do conteúdo emocional que a esse ato viria ser chumbado depois.
Vamos que vamos nessa toada porquanto na narrativa desse conto encontraremos também a informação de que Elohim Deus descansou, ou descansaram todos depois dessa operação e após esse trabalho de criação dos filhos assim produzidos. Afinal, ele, ou eles, bem que mereciam esse descanso depois desse estressante exercício de engenharia genética e exercício educacional, que todos nós sabemos, não é brincadeira. E então, como está escrito, Elohim Deus, que agora já podemos também chamar de Jeová ou Javé, porque depois de fazer o mundo e o homem ele se tornou conhecido pelos seus atributos e deu-se ao direito de ter também um nome individualizado, já que Elohim era uma alcunha que designava também um ser coletivo, disse ao homem e à sua mulher para cultivar e cuidar daquele belo jardim que ele havia plantado no Oriente, naquele lugar que se chamava Éden. O que de pronto nos força a pensar que o homem não fora feito somente para servir como sua consciência na terra, mas também para ser uma espécie de servo, ou caseiro desse sítio chamado Terra, que ele havia feito no exercício da sua potência, para ter um reino sobre o qual reinar e súditos sobre os quais pudesse exercer a sua majestade.
Dito e feito pôde então descansar, como foi reportado que ele fez. E depois se confirma tudo isso com a informação de que ele costumava passear naquele jardim, em direção ao por do sol, o que nos dá bem a ideia de que Deus também cultivava o saudável costume de fazer um happy hour depois do trabalho como nós mesmos gostamos de fazer.
(continua)- Excerto do conto A Árvore e o Dragão, no prelo para publicação.