Religião não se discute?
Uma vez um aluno um pouco mais curioso perguntou ao grande mestre Santo Agostinho, bispo de Hipona, o que Deus fazia antes de começar a fazer os céus e a terra, como está escrito nas primeiras linhas da Bíblia. Ele tinha curiosidade em saber, já que o livro sagrado começa com uma acção activa de Deus, separando a luz das trevas e depois fazendo o restante do universo. Santo Agostinho deu uma resposta meio enviesada, bem a moda dos mestres daqueles tempos, quando era proibido discutir religião, e principalmente aqueles dogmas de fé, cujas respostas pudessem suscitar alguma contestação. Utilizando a linguagem de hoje, poderíamos dizer que ele respondeu ao espevitado aluno que “ antes de começar a fazer o universo, Deus estava preparando um inferno para os “pentelhos” que se metem a fazer esse tipo de pergunta”.
Muita gente ainda age assim hoje em dia. Finca posição em certos dogmas e vai em frente como se fosse um burro em quem se coloca viseiras para que não olhe para os lados e se distraia.
Isso é conveniente para quem vive da indústria da fé, mas já se disse que pior do aquele que nunca lê livro nenhum, é a pessoa que lê um livro só. A Bíblia interessa-nos porque ela é base da nossa cultura. O Big Bang também nos interessa porque ele um facto científico que é fruto da especulação que a espécie humana desenvolveu em busca da sua origem. O que havia antes dele também preocupa porque simplesmente pensar que tudo começou com o Big Bang, ou da forma que a Bíblia conta não satisfaz a nossa sede de saber. Assim, nada deveria ficar fora do território especulativo da mente humana, e opor dogmas, ou seleccionar assuntos que não podem ser discutidos não é defender a fé. Antes é enfraquecê-la, colocando freios à nossa mente, que deve avançar sempre, a despeito de todas as portas que algumas pessoas tentam fechar na frente dela.
Ler a Bíblia como se ela fosse um código de leis, ou uma história literal do mundo, ou ainda pior, como uma cartilha doutrinária infalível, pode gerar mentes maravilhosas como a de John Milton, de Madre Teresa de Calcutá, a Irmã Dulce, e outras luminosidades mais, mas também pode gerar malucos como Jim Jones e Charles Manson, por exemplo [1].
Da mesma forma pode inspirar mentes como a de José Saramago, que via na Bíblia um livro pernicioso que incentiva as guerras, a matança, o incesto, os ódios raciais e tudo quanto há de ruim de mundo.
Cain e Abel como exemplo
Northrop Frye é um professor canadense que escreveu um livro chamado Código dos Códigos, analisando a Bíblia do ponto vista literário. Neste trabalho, despido de toda roupagem doutrinária e ideológica, ele mostra a riqueza do inconsciente humano, comunicada pela Bíblia através dos mitos, das histórias, provérbios, parábolas, símbolos e visões, muitas delas intraduzíveis em linguagem vernacular, mas que fazem dela um livro formidável e único, onde toda a aventura humana, desde a sua origem celular, até a sua organização em sociedade, é referida.
Frye mostra-nos que histórias como a da criação e queda do homem são ecos de um desenvolvimento natural das sociedades humanas, que reflectem a passagem de uma colonização extractivista, onde o homem tirava o essencial do seu sustento da natureza, para o momento em que, premido pelo aumento populacional, o homem foi obrigado a desenvolver a agricultura e o pastoreio para sobreviver. Assim, a história de Cain e Abel, por exemplo, é uma metáfora do conflito entre a agricultura, actividade que necessitava de terras agricultáveis, e o pastoreio, que precisava de espaço aberto para a criação de animais. Este facto, que reflecte o avanço da civilização e a sua urbanização, tem sido, amiúde, o responsável pelos grandes conflitos da história e sobrevive ainda hoje, até no interior do Brasil, onde a competição entre as grandes fazendas de gado e o assentamento de colonos tem rendido incontáveis mortos, como já aconteceu nos Estados Unidos e outros países, no passado.
A terra prometida- um arquétipo utópico
O que é a terra prometida dos israelitas senão um arquétipo da utopia longamente sonhada pelo homem em todos os tempos? Quem não sonhou um dia com uma terra que mana leite e mel ─ um lugar onde a vida possa ser vivida sem conflitos─, lugar esse que pode ser um país, uma cidade, ou mesmo um sítio, uma casa de praia, uma aposentadoria, uma casinha pequenina na serra, etc.? Desta forma, toda a saga bíblica do povo de Israel pode ser vista como uma longa e eterna procura pela realização desse arquétipo que está no inconsciente colectivo da humanidade. Destarte, a terra prometida, tanto a de Abraão, como a de Moisés, os reinos de Davi e Salomão, a restauração do reino judeu, empreendida por Zorobabel, e a própria ideia do reino messiânico dos essénios, que se cristalizou na promessa cristã, são, na verdade, ecos dessa utopia que alimenta a alma humana desde os primórdios da nossa civilização.
A Bíblia- Retrato do inconsciente da humanidade
A Bíblia, do ponto de vista estritamente literário, reflecte a totalidade do inconsciente da humanidade codificado em mitos, histórias, aforismos, metáforas, metonímias, provérbios, que juntos, fornecem um celeiro infinito de arquétipos para toda a nossa cultura. A moral, o direito, a filosofia, enfim, todos os estratos que compõem a superestrutura da nossa civilização podem ser encontrados nela. E praticamente, todos os clássicos enredos literários que conhecemos já estão, de alguma forma, também nela presentes.
Por fim, o que ressalta, desse trabalho de Frye, é a ideia de que o conceito de Deus não é fruto de intuições estanques, separadas uns dos outros, como de princípio se poderia pensar, mas sim a cristalização de uma sensibilidade que é desenvolvida na forma como a sociedade é organizada. Cada povo tende a prefigurar e atribuir ao seu Deus as suas próprias identidades. Assim, se Israel desenvolveu a ideia de um deus patriarcal, apegado a tradições pastoris, é porque assim vivia esse povo. Da mesma forma, os gregos, com os seus deuses quase humanos reflectiam a evolução social e mental de um povo que via a vida sempre como um limite a superar.
A questão da hierarquia
Destarte, os conceitos que se referem à divindade não podem ser separados da forma como a sociedade organiza a sua hierarquia. O facto de o Deus hebreu aparecer prefigurado sempre como uma espécie de patriarca severo é próprio da sociedade pastoril da Israel bíblica, da mesma forma que o Deus Brahma, que aparece no topo da hierarquia dos deuses hindus, é um arquétipo fundamentado na figura do nobre brâmane, cujo status na sociedade daquele povo era o mais alto. Por isso, também, os deuses, em todas as tradições religiosas dos povos antigos, moram em montanhas (lugares altos), como os deuses do Olimpo, ou Jeová no Monte Sinai, UiraCocha (o deus dos povos andinos) em Tiuhanaco, etc.
Da mesma forma, o facto de os deuses morarem numa montanha, ou aparecerem numa delas, ou ter os seus templos construídos em lugares altos, é uma metáfora que indica a condição superior dele em relação aos seus subordinados homens. É uma transposição da realidade social vivida pelos povos que os cultuam, o que nos leva a deduzir que o conceito de Deus é uma dinâmica extraída da forma como a sociedade é estratificada.
Deus é sempre verdadeiro
Assim, pode-se deduzir também que os diferentes nomes que os antigos davam a Deus não reflectiam identidades de deidades em si mesmas, mas sim apenas códigos linguísticos extraídos dos seus sistemas sócio-políticos. Deste modo, os nomes de Jeová, Aton, Marduc, Baal, Uiracocha, Zeus, etc., não representam deuses diferentes, mas sim retratos de uma mesma ideia, desenvolvida segundo diferentes visões. São frutos de diferentes fases vividas pela humanidade e as suas consequentes formas de ver o mundo. Por isso são deuses agrários uns, deuses urbanos outros, divindades pastoris, extractivistas, patriarcais, matriarcais, humanistas, belicosos, pacifistas etc. Conforme a forma de viver de cada povo.
A ideia é a de que Deus muda conforme o tempo e a vida em que se vive. Por isso, talvez, a melhor conceito que até hoje foi expresso a seu respeito ainda é a do Apóstolo Paulo. “ Deus”, disse ele, “é sempre verdadeiro, seja qual for o lugar e o tempo.”
João Anatalino Rodrigues
Notas
[1] Jim Jones, pastor, fundador da igreja Templo dos Povos (Peoples Temple), induziu os seus seguidores a um suicídio em massa na comunidade de Jonestown na Guiana, em 18 de Novembro de 1978. 918 pessoas morreram, na sua maioria, por envenenamento. Charles Manson foi o líder de uma comunidade hippie nos anos sessenta. Considerado uma espécie de profeta pelos seus seguidores, ele cometeu vários assassinatos ritualísticos nos Estados Unidos, inclusive da actriz Sharon Tate, na época grávida de oito meses. Foi condenado à morte mais teve a sua pena transformada em prisão perpétua, pena que está cumprindo até hoje, na Penitenciária de Corcoran, Califórnia
publicado na revista FreeMason- Lisboa- Portugal - 30-12-2024