E Judá, então disse aos seus irmãos: De que se nos aproveita matar o nosso irmão e ocultar a sua morte? É melhor que se o venda aos ismaelitas, e que não se manchem as nossas mãos.”
Génesis, 37;25.
O hebreu José foi um jovem pastor inteligente,
Que pelo Deus Altíssimo era bem considerado.
Pois além de sábio tinha os dons de um vidente,
Que podia ver o futuro pela leitura do passado.
Mas aos irmãos, que não tinham essa qualidade,
O dom de José lhes constrangia como agravo.
E com torpe inveja lhe perpetraram a maldade:
A mercadores sobas o venderam como escravo.
Então José, para os seus, foi dado como morto,
Mas nas terras do Egipto, na verdade, ele crescia.
Porque aos puros de coração Deus dá conforto.
Assim José, jovem pastor vidente, filho de Jacob,
Feito servo por maldade da sua própria família,
Pela graça de Deus, tornou-se ministro do faraó.
João Anatalino – A Bíblia Sonetada
A questão ideológica
A história de José e os seus irmãos é bastante emblemática porque faz parte de um enredo urdido pelos cronistas bíblicos para dar ao povo de Israel uma saga heróica e lógica, capaz de justificar todas as suas reivindicações como povo escolhido de Deus e legítimo possuidor da terra de Canaã, actual Palestina.
Aliás, é a continuidade histórica das histórias bíblicas, com um livro dando seguimento e justificando o outro, que dá à Bíblia a força que ela tem. Nenhuma outra literatura sagrada, de povo algum sobre a terra, conseguiu construir um processo tão bem estruturado nos seus termos, quanto os israelitas com a sua Bíblia.
Não importa o quanto de verdade histórica possa existir nas narrativas que ela encerra, nem que a maioria das suas inspirações sejam originárias de outros povos, particularmente os sumérios e egípcios, de quem se acredita, os cronistas bíblicos emprestaram grande parte dos mitos e lendas com os quais construíram a sua história da criação e as bases da sua religião. A verdade é que a Bíblia judaica foi a primeira e única literatura dos antigos povos que construiu uma escatologia universal com começo, meio e fim, dando à humanidade uma modelo de universo inteligível e palpável, que tanto serve a uma mente mais preparada, que nela encontra uma fonte histórica de inegável utilidade, quanto às mentalidades que só precisam de algo para acreditar, algo que seja simples e directo e que não exija muito fosfato para entender, mas apenas fé.
Para estes basta que uma pessoa significativa para ela diga que Deus fez o mundo em seis dias e no sétimo descansou e que ele fez o homem do barro da terra e o animou com um sopro nas narinas, para que ele tenha a explicação das suas origens e pronto. Isso é tão verdadeiro para eles quanto o facto de que o seu pai e a sua mãe os geraram. Todo o resto é especulação inútil que nem merece ser comentada.
Este é o grande poder da Bíblia. Poder de convencimento. Poder da Palavra de Deus. Dogma, assunto fechado que não discute. Ou se aceita que é assim ou não se aceita e pronto.
E não adianta muito os pesquisadores ficarem levantando incongruências nas histórias bíblicas. Não adianta dizer, por exemplo, que a história de José e os seus irmãos, provavelmente não é mais que um enredo literário urdido pelos cronistas bíblicos para mostrar como o povo de Israel deve ter imigrado para o Egipto durante um período de seca na Palestina, e lá no vale do Nilo, acabaram se fixando e prosperando em razão de o Egipto, naquela época estar sendo dominado por um povo conhecido pelo nome de hicsos, povo semita aparentado com os israelitas. Isso é história. O povo não acredita na história, mas na ideologia que foi criada a partir dela.
Uma história comum
É claro que a história de José, o jovem filho de Jacob, dotado de dons especiais, especialmente o de vidência, pode muito bem ter acontecido como a Bíblia conta. Afinal, nada existe de extraordinário nela. É uma história bastante comum. Numa família tão grande, onde os direitos de primogenitura são uma tradição que conta muito na hora da sucessão patriarcal, um irmão que tenha dotes tão diferenciados, ainda que seja um dos mais novos na linha de sucessão, é um perigo. A inveja, o medo, a prevenção, são sentimentos comuns a toda a humanidade, e não é por ser um povo escolhido que a família de Jacob (Israel) não os tivesse.
Conta a Bíblia que José, por ser um rapaz dotado de dons especiais, era amado por seu pai Jacob acima dos demais irmãos. Não só por seus dotes especiais, mas também por era, junto com o filho mais novo Benjamim, filho da sua mais amada esposa, Raquel. Os outros dez eram filhos da sua outra esposa, Lia e das suas concubinas.
Assim, José e Benjamim, eram, na linha sucessória de Jacob (Israel), os únicos herdeiros legítimos, filhos da sua verdadeira esposa. Em razão disso os seus meio-irmãos o entregaram a uns comerciantes ismaelitas, os quais o venderam como escravo a um nobre egípcio que exercia importante função no governo daquele povo. Este nobre chamava-se Putifar e tinha uma jovem e fogosa esposa, que logo se apaixonou por José e quis levá-lo para a cama. Mas José era um sujeito de bons princípios e não era bobo. Ele sabia que se o seu amo descobrisse que ela andava dormindo com a mulher dele, nem Jeová, o salvaria da morte. Então recusou, fugiu, fez de tudo para escapar do cerco que a sua ama lhe fazia. Mulher desprezada é pior que homem que foi recusado por uma mulher: a sua vingança, geralmente é mais cruel e mais subtil, pois que sempre vai além da mera violência, ferindo o homem naquilo que ele tem de mais precioso.
No caso de José, a desprezada esposa de Putifar armou para ele uma farsa que acabou por atirá-lo numa prisão. Ela simplesmente o agarrou, rasgou as próprias roupas e gritou dizendo que José estava querendo estuprá-la. Diante da vergonhosa cena– José com a roupa rasgada da patroa nas mãos e ela seminua, gritando – não deu outra coisa. Era a palavra da patroa contra a palavra do escravo e José foi parar no calabouço.
Todavia, conta a Bíblia que Jeová, o Deus de José e o seu povo, não o deixou desamparado. Daí que ele encontrou no mesmo calabouço onde foi atirado dois ex-servos do próprio faraó, que ali estavam presos como ele, por terem cometido algum mal feito aos olhos do faraó. Um deles era culpado, outro era inocente. Ao culpado José profetizou que ele seria executado em breve, e ao inocente ele profetizou que seria logo solto e reintegrado nas suas funções.
Dito e feito, foi assim mesmo que aconteceu. Quando o sujeito foi reintegrado nas suas funções de mordomo do faraó, este logo soube que o rei andava tendo uns sonhos estranhos que se repetiam noite após noite. Sete vacas magras devoravam sete vacas gordas, e sete feixes esquálidos de trigo, que saíram conjuntamente da mesma espiga com outros sete feixes grãos sadios, devoravam estes últimos.
O Egipto era sabidamente um país cheio de magos e adivinhos. Faraó mandou chamar a todos, e mediante promessas de gordas recompensas, pediu-lhes que interpretassem os seus estranhos sonhos. Mas nenhum deles foi capaz. Então o copeiro chefe do Faraó, o mesmo que tinha sido libertado da prisão e reintegrado nas suas funções no palácio lembrou-se do prisioneiro José e de como ele havia interpretado os sonhos dele e do padeiro do Faraó na prisão. E de como havia acontecido tal e qual ele previra.
O Faraó mandou chamar José e este deu a interpretação dos seus sonhos. “ Sete anos de seca e de fome por todo o país do Egipto se seguirão a sete anos de abundância e fartura. Nesses sete anos de seca todos os bens acumulados nos sete anos de fartura serão consumidos e o Egipto passará muita fome.”
A interpretação pareceu muito lógica ao Faraó, já que essa situação já era conhecida no Egipto, tendo se repetido ao longo dos séculos. Por isso já os Faraós mais antigos tinham rasgado muitos canais e reservatórios por todo o país, para acumular água nos anos de estiagem do Nilo. E havia muitos celeiros de trigo pelo país, para guardar os excedentes de grãos das safras colhidas nos anos de fartura. Portanto, a interpretação do sonho, que José lhe dera, pareceu ao Faraó muito lógica, pois esse era um temor que havia no inconsciente de todo o povo egípcio, e o rei que não tomasse providências a esse respeito geralmente acabava perdendo o trono.
Com isso, entretanto, o Faraó agradou-se tanto de José que fez dele o seu primeiro ministro. E José passou a ser a maior autoridade no Egipto, só abaixo do próprio rei.
Quando a seca começou, ela não atingiu só a terra do Egipto. Atingiu também toda a região do Oriente Médio. Uma das regiões mais atingidas foi a Palestina, e mais propriamente a Terra de Canaã, onde vivia a família de José.
Em toda a região, somente no Egipto havia comida, pois nos sete anos anteriores de boas safras o primeiro ministro do Faraó havia conduzido uma política de poupança e acumulação de grãos, de forma que o povo Egípcio era o único que não passava fome na região e ainda exportava excedentes para os povos vizinhos, aumentando a riqueza do país.
A história é bem conhecida. Um dia José recebeu a visita dos seus torpes irmãos que o haviam vendido como escravo. Depois de submetê-los a algumas torturas morais ele os perdoou e mais que isso, trouxe a família inteira para o Egipto, onde ela prosperou e se tornou um grande povo. A história, portanto, é bem comum e nada obsta que seja verdadeira.
Evidências históricas e arqueológicas
A história de José e os seus irmãos no Egipto sempre preocupou os pesquisadores porque nunca se encontraram referências históricas nos registros egípcios de uma imigração hebraica para o Vale do Nilo na época referida pela Bíblia. Considerando que os egípcios eram um povo que costumava registrar praticamente tudo que acontecia no país, é muito estranho que acontecimentos tão marcantes como esses da passagem dos israelitas pelo Egipto não tivesse merecido um único registro na farta historiografia egípcia.
A história de José e os seus irmãos só começou a fazer sentido para os historiadores quando se começou a recensear o período em que os hicsos governaram o Egipto. Este povo era semita, portanto, eram aparentados com os israelitas (chamados habirus nos registros egípcios), e provavelmente falavam a mesma língua, ou algo aproximado.
Maneton, sacerdote egípcio que viveu no terceiro século antes de Cristo e escreveu uma história do antigo Egipto, fala desse povo como sendo uma onda de imigrantes palestinos que ocupou o Egipto sem batalha, mas por ter religião diferente, acabaram destruindo cidades e “os templos dos deuses”, provocando matança e devastação. Se fixaram, na sua maioria, na região do Delta, e gradativamente foram ocupando todo o Vale do Nilo. Ao fim de dois séculos tinham conquistado todo o país. A sua capital era Aváris, no Delta do Nilo. Por volta de 1580 a. C. os egípcios se rebelaram, e comandados pelo rei de Tebas, Amósis, os hicsos foram finalmente expulsos do Egipto. Diz o sacerdote Maneton que essa expulsão ocorreu sem sangue, e os hicsos deixaram o Egipto com as suas famílias e os seus bens, tendo ido para a Palestina, onde construíram a cidade de Jerusalém. Estas referências se encontram citadas nos trabalhos de Flávio Josefo (Contra Apião, Vol. I, pág. 73-105 § 14-6; pág. 223-232 § 25-6), que contesta a versão do historiador egípcio pois este sugere que toda a saga dos israelitas no Egipto, conforme escrita no Génesis e no Êxodo foi, na verdade o período de ocupação dos hicsos, não existindo na sua opinião, nenhum Moisés e nenhum êxodo israelita dirigido pelo Deus de Israel. [1]
Quanto a isso os pesquisadores levantaram que por volta de 1800 a.C., houve realmente uma grande onda migratória pacífica de povos do oriente para o Egipto, pois aquela região do passava por um período de seca e fome. A pesquisa arqueológica comprova a veracidade bíblica nesse ponto. Mas ela mostra também que esses imigrantes nunca foram bem vindos ao Egipto, pois a literatura egípcia dessa época se refere a eles como os “vagabundos do deserto.” Ficaram confinados à região do Delta, e não lhes foi permitida a miscigenação com os naturais do país. Entre esses estrangeiros imigrantes devia estar a família de Jacob.
No final do reinado do Faraó Amenemhet III (1843 a 1797 a.C.), o poderio do Império Egípcio começou a decair. Ao mesmo tempo, os povos semitas acantonados no Delta prosperavam e começavam a ameaçar a hegemonia egípcia.
Em sucessivas guerras esses povos (já então conhecidos como hicsos) acabaram derrotando os faraós da 13.ª Dinastia, cuja capital se situava perto de Mênfis, e assumiram o controle do médio e baixo Egipto por volta de 1700 AC, o qual governaram por cerca de 100 anos. Maneton conta como isso aconteceu:
“Havia então um rei nosso chamado Timaios. Foi no seu reinado que isso aconteceu. Não sei por que os deuses estavam descontentes connosco. Surgiram de improviso, homens de nascimento ignorado, vindos das terras do Oriente. Tiveram a audácia de empreender uma campanha contra a nossa terra e a subjugaram facilmente sem uma única batalha. Depois de haver submetido os nossos soberanos ao seu poder, incendiaram as nossas cidades, destruíram os templos, os deuses, e todos os habitantes foram tratados barbaramente; mataram uma parte e levaram os filhos e as mulheres de outros como escravos. Por fim, elegeram rei um dos seus; o nome dele era Salatis; vivia em Mênfis e cobrava tributo ao Alto e Baixo Egipto; instalou guarnições em lugares convenientes… Escolheram no Distrito de Saís, uma cidade adequada para os seus fins, que ficava à leste dos braços do Rio Nilo, junto a Bubaste, e chamaram-na de Aváris”. (Flávio Josefo, op citado pág., 543)
Verdadeiro ou não, esse relato de historiador egípcio da antiguidade é a única referência, fora da Bíblia, aos acontecimentos ocorridos no Egipto na época em que supõe os israelitas viveram lá. Flávio Josefo o contesta pois ele desconstrói a saga heróica do Êxodo.
Durante cerca de duzentos anos os hicsos dominaram o Egipto com os seus “reis pastores”, como os define Maneton. Em dado momento, a população estrangeira chegou a superar a egípcia. Ela estava concentrada mais no Delta do Nilo e constantemente fazia guerra aos egípcios, de quem exigiam tributos cada vez mais pesados. Provavelmente é a essa situação que a Bíblia se refere quando os egípcios diziam que “o povo dos filhos de Israel é mais numeroso e mais forte do que nós”. (Êxodo, 1:9)
O Mestre Hiram histórico?
Por volta de 1580 a.C. o rei de Tebas, Seqenenre Tao II, iniciou uma revolta contra o domínio hicso, visando recuperar o controle do país. Este faraó foi morto violentamente, supostamente à traição, por agentes hicsos. Um exame da sua múmia mostrou que ele fora morto a pancadas, pois o seu crânio apresentava várias perfurações, como quem tivesse sido atacado de surpresa por objectos contundentes. Segundo os autores do livro “A Chave de Hiram” esse faraó foi o protótipo que teria servido para o mítico Drama de Hiram, representado pelos maçons na elevação para o terceiro grau, o grau de Mestre. Este faraó, que teria sido responsável por grandes construções em Luxor e Carnac, foi submetido a um ritual de mumificação, cujos registros os aproximam bastante do ritual desenvolvido no terceiro grau da Maçonaria, razão pela qual os autores em questão defendem a tese de que teria sido na morte desse faraó que os maçons se inspiraram para compor o estranho rito que é desenvolvido na elevação dos mestres maçons. [2]
Quanto aos hicsos eles foram finalmente expulsos por Amósis I, em 1570 a. C. Essa expulsão, entretanto não foi pacífica, pois segundo os registros históricos ela custou dez anos de guerra. Expulsos finalmente, os “reis pastores”, os estrangeiros sobreviventes que ficaram no Egipto foram escravizados. Provavelmente é a esse episódio que a Bíblia se refere quando diz que “ levantou-se no Egipto um novo rei que não conhecia José” e que esse começou a oprimir os israelitas com astúcia para que” sobrevindo contra nós alguma guerra, eles se unam contra nós, e depois de nos vencer, saiam do país”.(Êxodo, 1:10).
Neste ponto o relato bíblico coincide com os registros históricos. É a partir da expulsão dos hicsos que os israelitas se tornam escravos dos egípcios e é possível que os cronistas bíblicos tenham se inspirado nesses factos para compor as suas crónicas do Êxodo. E talvez tenham também se apropriado dos registros da expulsão dos hicsos para criarem a famosa história da fuga dos israelitas pelo Mar Vermelho e todos os “milagres” relatados na epopeia do Êxodo.
A conexão maçónica
Mas tudo isso é pura especulação. O que fica dessa história de José e os seus irmãos é o exemplo maçónico da mais pura fraternidade: nele se ressalta o perdão (José perdoa a traição dos irmãos), a solidariedade (O Irmão que está em melhor posição ajuda os que não estão), o carácter sem mácula(que José mostrou ao não ceder à luxúria da sua ama) e a fé nos desígnios de Deus, que nunca abandona os que lhe são fiéis.
E principalmente porque é dessa experiência no Egipto que Israel se levantou como a primeira e verdadeira experiência maçónica no mundo. Como construtores de grandes edifícios eles se tornaram os antecessores da Maçonaria operativa; e como arquitectos da moral da humanidade, eles conquistaram o direito de serem chamados pedreiros morais. Tudo tem a ver, como se percebe, com a verdadeira Maçonaria.
João Anatalino Rodrigues
publicado na revista Freenmason-Lisboa, 11-12-2024