CAPÍTULO 21
Não poderíamos continuar o nosso relato sem abordar uma questão que amiúde tem frequentado as especulações de quem se dá ao trabalho de pensar nesse drama da criação. Causa espécie em todos que tomaram conhecimento dessa história pelos cânones considerados dignos de crédito a informação de que Cain, ao aportar na terra de Nod, casou-se, conheceu sua mulher e teve um filho a quem chamou de Enoque. E que inclusive construiu uma cidade a qual deu o seu nome. A questão que põe, nesse caso, é de onde teria vindo a esposa de Cain, sendo o casal humano computado como a primeira cria de Jeová Elohin sobre a terra e o próprio Cain o filho primogênito deles nascido?
A questão se resolve se voltarmos alguns lustros atrás e recuperarmos a informação de que Eva não foi a primeira mulher de Adão porque antes dela houve outra, chamada Lilith, que abandonou Adão porque não concordava em ser uma mera depositária da semente dele para gerar filhos. Sua recusa, se não nos falha a memória, se ancorava principalmente no fato de não querer se deitar por baixo dele e deixar que ele a penetrasse. E essa foi, ao que consta, a razão dessa que foi a primeira separação entre casais na terra, para não dizer um divórcio ou desquite, porquanto nesses vetustos tempos esse recurso jurídico ainda não havia sido instituído para desfazer um nó que, dizia-se antigamente, não devia ser desatado porque o que Deus juntou não era lícito separar.
Lilith, no entanto, que foi consagrada como a primeira feminista da história, só não queimou os sutiãs porque naquele tempo não se usava esse suporte para manter ereto os peitos. E também não ficou no caritó, como dizem os nossos caros conterrâneos nordestinos das mulheres que ficam solteiras a vida inteira. Posto que só tinha à mão o ex-Elohim Samael, que já conhecemos como sedicioso e herético, mas que também era anjo e por tradições já consagradas tinha belas feições e podia assumir o porte físico que lhe aprouvesse para agradar uma mulher, foi com ele mesmo que ela se embolou, gerando uma família de gigantes que recebeu o nome de nefilins.
Nome esse que não nos estranha porquanto todos os seres de origem celeste recebiam terminologia semelhante, já que, como tais eram nomeadas as etnias celestes que recebiam titulações como elohins, aufanins, querubins, malaquins, serafins e outros do mesmo naipe.
Destarte, seja por fontes canônicas ou apócrifas essa informação nos dá conta de que nesse tempo já existia um povo constituído de homens de alta estatura e corpo cabeludo que vivia na planície de Senaar nessas vetustas eras que o dilúvio consumiu. E evidentemente, não haviam nascidos da semente de Adão e do útero de Eva, mas sim de outra etnia que Jeová Elohin não havia criado.
Há informações que a tal esposa de Cain seria a própria Lilith, que ficou, diríamos, não viúva ― porquanto Samael, o seu marido, ou amante, como quisermos ver essa relação, era um ser de origem celeste e não estava sujeito ao destino de todos os mortais ― mas soltinha no mundo porque Samael, sendo um personagem com um papel a cumprir nos destinos do mundo, teve que deixá-la tão logo fez nela os filhos suficientes para começar a já referida família de nefilins. A informação que nos dá conta que a tal esposa de Cain era a própria Lilith justifica inclusive a tradição que desde aqueles tempos se propaga pelo mundo de que a estirpe de Cain é a raiz do mal, não só porque Cain era filho do anjo caído, mas porque também se amasiou com a mãe de todos os demônios e que pior, seria sua própria madrasta. Essa circunstância, além de tudo o que se imputa a esses malfadados personagens, ainda se lhes cola a pecha do incesto.
Dito isso, voltemos as nossas câmaras para Cain, agora para vê-lo chegando à terra de Nod, que ficava ao Oriente do Éden, também conhecida como a terra de Senaar. Durante todo o tempo em que andou errante pelo deserto, esse renegado bastardo da família de Adão não teve contato com outras pessoas e muito menos com mulheres.
Aliás, a única mulher que Cain conhecera até então era sua própria mãe, Eva, de sorte que ele era ignorante nessas questões de sexo e nada sabia dos prazeres e das encrencas que uma relação entre homem e mulher podem trazer. Mas a função sexual é algo inerente a todo ser vivo e no ser humano, desde que ele passou a refletir os próprios pensamentos, essa função sublimou-se em algo que transcende os próprios sentimentos aliciando, junto com a testosterona e o estrogênio que fazem funcionar a máquina sexual um forte componente psíquico, que às vezes, até mais que esses fluídos é responsável pelos nossos desejos.
Cain era jovem e a força da sua libido tinha se desenvolvido a ponto de sentir um intumescimento naquele penduricalho que carregava entre as pernas quando nele tocava. Mas ele, por essa época ainda não conhecia mulher e não tinha a sabedoria de que aquele intumescimento que lhe fazia o pênis aumentar de volume toda vez que tocava nele era o sinal distintivo de um desejo que seria para todo o sempre chumbado ao homem como um símbolo do pecado, da luxúria e da concupiscência. Por isso deixava que suas mãos o tocassem e manipulasse, como à teta de uma vaca quando dela se extrai o leite, até que dele saia, numa golfada que lhe provocava um imenso prazer, uma gosma embranquecida e pegajosa. Dessa sorte Cain se satisfazia, enquanto caminhava, errante pela terra de Nod, até chegar naquela cidade que Samael e e seus apoiadores, lá chamados de annunakis, haviam construído para os descendentes que haviam gerado na terra, conhecidos como nefilins.
Cabe aqui registrar uma informação que nas crônicas tidas como canônicas não se encontra, mas em outras fontes foram referidas, que pode justificar essa que parece ser uma lacuna impreenchível nessa história, ou seja, a de que os anjos caídos tiveram comércio carnal com as filhas dos homens e geraram os gigantes que se tornaram os grandes guerreiros daquelas remotas épocas. Na verdade, se quisermos, podemos ver aqui o elo de ligação entre o que os doutos chamam de criacionismo e evolucionismo, tido o primeiro termo como a crença de que o homem apareceu no mundo já prontinho e perfeito, criado a partir de um molde de barro, com todos os seus órgãos e processadores em condições de serem usados, cada um na função que lhe compete, e o segundo uma proposição assaz recente que sustenta que o ser humano é resultado de uma longa evolução biológica que começou há milhões de anos em alguma forma de vida.
A darmos como possíveis ambas as hipóteses ficamos entre a cruz e a espada, porquanto uma infirma a outra com iguais laivos de autoridade, que só nos resta aquela solução, já referida, proposta por Hitler quando foi confrontado com o problema de resolver se a terra era oca e todo o universo estava dentro dela, como uma criança na barriga da mãe, ou o contrário, se era ela que estava boiando dentro do espaço, com o céu por cima dela. Já sabemos qual foi a resposta dele: tanto pode ser uma coisa como a outra. Para certos assuntos não há necessidade de termos uma resposta coerente.
Se os filósofos não fossem tão teimosos e ciosos da sua seriedade intelectual todos os problemas que a nossa mentalidade especulativa nos coloca poderiam ser resolvidos dessa maneira. Simplesmente não temos necessidade de respostas coerentes e lógicas para questões que não afetam o nosso dia a dia. Com isso desmontamos, já de início, qualquer objeção que se venha a levantar contra esta nossa narrativa, no sentido de que, até hoje, não se encontrou nenhum vestígio dessas raças antediluvianas que se informa terem vivido nesses dias aos quais estamos nos referindo e por isso mesmo os tais nefilins seriam apenas uma lenda.
Nesse sentido tudo pode ser, ou não, e isso simplesmente não importa. Daí, se dissermos que os chamados descendentes dos anjos rebeldes, que eram tanto machos como fêmeas, foram o resultado do seu cruzamento com uma raça simiesca, chamada pelos acadêmicos de homo erectus, que se encontrava já no limiar da evolução, não estaríamos, talvez, longe da verdade. E esse conúbio, que pode ter sido natural, por meio de simples função sexual existente em todos os seres que hospedam vida, ou até por uma operação genética realizada por seres extraterrestres como sustentam alguns amadores do insólito, deu como resultado o homem como hoje o conhecemos.
Partindo dessa ideia, por mais extravagante que ela possa ser, podemos ver no episódio da sedução de Eva por Samael uma explicação de como o cérebro do homo erectus, então ainda um primata, conquanto já mais avançado do que seus primos chipanzés, gorilas e outros da mesma espécie, adquiriu uma camada de neurônios subjacentes que permitiu a ele dar o passo da reflexão, acontecimento que fez dele o homo sapiens.
Tudo pode ser. Numa história onde uma explicação não contenta a todos qualquer outra pode ser levantada, ainda que nenhuma delas possa ser consagrada como definitiva.
E dessa ordem também é que iremos encontrar o nosso personagem Cain, chegando à uma cidade à qual se dava o nome de Uruk, uma urbe nada mesquinha, com uma população bastante considerável em se tratando da época da qual se fala, que era praticamente a aurora da humanidade. Tinha já as suas casas e palácios feitos com tijolos de adobe, alguns até com dois pisos e mais, a mostrar que ali estava uma civilização já bastante adiantada, o que de resto também se justifica pela solução de Hitler.
Não temos necessidade de saber como as civilizações começaram. Basta saber que elas começaram de algum modo. Dito isso, veremos que bem no centro da cidade havia um edifício escalonado, de vários andares em forma de quadrados, uns menores erguidos em cima de outros maiores, formando uma torre imensa que parecia tocar o céu. Zigurate era os nomes desse edifício, que havia em todas as cidades que esse povo construíra e a Cain foi informado que eles eram templos erguidos em homenagem ao deus da terra, chamado Enki. E conjugado a ele havia um palácio que segundo Cain logo viria a saber, morava a sacerdotisa maior daquele povo, que por sinal era também a sua rainha.
E nessa terra todo mundo falava uma mesma língua, que não sabe qual era entre tantas que se falam hoje naquela parte do mundo, mas que devia ser a única falada na terra naqueles tempos, o que inferimos porque Cain, mesmo vindo de lugares distantes daquele e sendo de outro povo, a entendia perfeitamente e com os habitantes daquele sítio podia bem se comunicar.
Cain logo soube que aquele povo era formado pelos descendentes dos amores da rainha daquela cidade, que se chamava Lilith, com um ser que tinha descido do céu, cujo nome era Enki, E Lilith, ao saber que Cain tinha vindo da terra de Haviláh, ao oriente do Éden, onde ela nascera e dada a Adão como esposa, logo o chamou ao palácio para saber das notícias que ele tinha sobre seu antigo marido, de quem ela sabia, por informações trazidas pelos caravaneiros que por lá passavam, que ganhara de Jeová Elhoin uma nova esposa e fora expulso do jardim do Éden por desobediência aos preceitos do Senhor.
Cain então lhe contou toda a saga vivida por ele desde o assassinato do seu irmão Abel, a sua expulsão da terra onde seus pais viviam e a sua jornada errante e peregrina pelo mundo até chegar na terra de Nod, na planície de Senaar e naquela cidade que eles chamavam de Uruk, onde Lilith oficiava como sacerdotisa e governava como rainha.
Se se acredita em uma fonte de informações há que se dar crédito a outra que informa a mesma coisa ainda que use palavras ou linguagem diferente. Até porque, neste caso, nem isso se pode invocar porquanto a língua falada no mundo, de acordo com essas mesmas fontes, era única.
Porém, mais do que todas as informações que Cain recebeu nessa entrevista com Lilith, passou ele a entender o motivo do comportamento de Jeová Elhoin ao recusar as suas oferendas e depois expulsá-lo da sua presença em razão do assassinato do irmão. E ao ter confirmado que o seu pai biológico tinha origem supraterrestre, o que dava a ele também uma aura dessa qualidade, sentiu-se engrandecido por dentro e nem estranhou quando, depois de tudo isso, ele mesmo foi parar na cama de Lilith para, pela primeira vez sentir aquele prazer que um homem sente quando se junta, pela carne, a uma mulher.
E para quem estranhar e indignar-se com esse caso, diremos que nesses vetustos tempos essas imoralidades não eram motivo de opróbio porquanto o próprio Jeová Elohin as admitia já que orientou o seu povo escolhido para que um irmão mais novo dormisse com a viúva do seu irmão para nela gerar os filhos que o defunto não conseguiu fazer. Destarte há muitos outros exemplos que mostram que a moral familiar nesses tempos primevos não era lá muito rígida, de sorte que não vemos nenhuma imoralidade no fato de Cain dormir com sua quase madrasta e nela fazer um filho a quem deram o nome de Enoque.
Do romance "A FORMA DO HOMEM"- publicado pelo Clube dos Autores, 2025