João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


        “Tudo começou quando Deus fez o céu e a terra, Num simples ato de Vontade exercida, Para dar sentido ao que nela se encerra, povoou-a com diversas formas de vida, Assim formou-se o reino dito animal, Com criaturas da terra, da água e do ar; E para dar remate a essa obra magistral, Ele fez o homem, sua criatura modelar, Do pó da terra ergueu o homem Adão; Com um sopro o tornou alma vivente. Multiplicar-se lhe foi dado por missão, Para garantir que fosse bom o resultado, Deus fez a mulher, a criatura surpreendente, que todo homem necessita ter do lado.”

     Essa é a narrativa oficial que consta das crônicas da criação, na qual colocamos um tom ritmado para não ficar só no contraponto da sátira e dar-lhe fumos de poesia. A se crer nela, Deus teria feito a mulher a partir de uma costela do homem, que ele tirou e usou como matéria prima para essa obra de engenharia genética, digna do melhor cirurgião moderno. Mas hoje nós já sabemos que o componente essencial que deu como resultado a nossa mamãe Eva não se tratava de uma dessas ripas ósseas que sustentam a estrutura do tronco humano, mas sim uma parte do organismo de Adão que fazia dele homem e mulher ao mesmo tempo. E com essa sabedoria fica mais fácil imaginar como isso pode ter acontecido.

      É dizer que Deus, num momento de inspiração e de reflexão deve ter pensado: “Ah! Eu conheço a solidão e sei o quanto ela é triste, por isso fiz o mundo e o homem para ter um reino sobre o qual reinar e uma criatura com quem eu possa me comunicar. Eu sou Deus, mas um Deus que não tem ninguém para saber que ele é Deus, não é nada.” 

     E da sua condição de ser solitário transpôs seu próprio sentimento para a criatura que havia produzido e assim tenha dito a Adão, “Ah! bem sei, Adão, meu filho, o quanto é triste uma vida solitária, por isso vou lhe fazer uma companheira”. Dessa sorte tenha feito com que ele se deitasse e dormisse, talvez com alguma anestesia ou sem ela, porquanto desse poder era revestido. E dele tivesse retirado, não uma costela inteira, como foi dito, porque isso aleijaria a sua criatura, mas outra parte qualquer do organismo de Adão, que são os gametas que identificam o sexo feminino, para com eles fazer a mulher.

Porquanto é sabido, e certamente Deus não ignorava essa informação, que em tudo que se exige um resultado é necessária a presença de dois polos para que ele se produza. Daí, para dar continuidade à espécie humana, da forma como ele gostaria que fosse, seria preciso uma parte feminina e uma masculina para que a configuração que ele tinha em mente para a humanidade tivesse um curso normal, com produção equilibrada de indivíduos do sexo feminino e masculino. Por isso a fórmula cromossômica que ele colocou na semente masculina que seria plantada no útero feminino, receita essa que até hoje ainda é a mais eficiente para essa produção, conquanto nossos laboratórios e nossos cientistas já tenham desenvolvido outras bulas capazes de produzir o mesmo resultado sem ter que recorrer às emotivas conjunções carnais que, muitas vezes, levam a resultados que vão muito além dos que aqueles que foram projetados.

       Isso sem falar que, em termos de resultado, ocorre de acontecer situações nas quais a configuração cromossômica não re- sulta ser determinante da sexualidade de uma pessoa. Isso porque há outros fatores que interferem nesse processo, o que faz com que indivíduos com corpos de mulher se comportem como homens e homens com corpos masculinos se passem por mulheres. Mas temos certeza que isso não foi projetado por Deus para ser uma normalidade no ser humano que ele produziu, já que, a se crer nas crônicas oficiais, ele mesmo condenou essas inversões sexuais, inclusive destruindo cidades inteiras por conta disso, como fez com aquelas infelizes Sodoma e Gomorra que ele queimou com fogo e enxofre que fez cair do céu porque lá, como foi escrito, as preferências sexuais estavam tão invertidas que já nem se sabia mais quem era macho e quem era fêmea.

       Todavia, do que se infere das crônicas oficiais, nosso papai Adão, tal como os anjos, foi feito como andrógeno, o que quer dizer que tinha em seu organismo as duas partes do ser humano. Ele foi feito homem e mulher como está escrito. Disso suspeitamos porque está registrado que quando o homem deu nomes às criaturas vivas ele viu que todas tinham a sua cara metade, menos ele. E dessa ordem deve ter perguntado ao Criador por que só ele não tinha uma companheira e Deus, mesmo sendo o Ser Supremo, que tudo pode e sabe, quando ouviu a reivindicação de Adão deu-lhe logo razão e se propôs corrigir a falha fazendo-lhe uma companheira.

      Não estamos fazendo aqui uma proposição temerária, pois como já dissemos, o próprio Criador não nega que ele mesmo reconheceu que não era bom que o homem estivesse só e que necessitava de alguém que lhe fizesse, não apenas companhia, como também, mais importante do que isso, lhe servisse como um polo oposto para que a corrente de vida nele inoculada pudesse circular. Isso porque, vamos repetir para não esquecer, não há no universo nenhuma força que não precise da existência de dois polos para poder se manifestar. Cuida-se que o próprio Deus é potência manifesta em realidades, e essa realidade, que é o universo material, é o seu polo positivo. Essa é a lei que regula a circulação da energia, pois segundo consta dos assentamentos acadêmicos, energia em movimento é o processo pela qual a massa atômica que formata e resulta no que chamamos de mundo da matéria toma forma e consistência. E foi dessa maneira, aglutinando quantidades de energia em pequenas unidades chamadas quantas que surgiram os átomos que se transformaram em células. E foi reunindo células num desenho lógico que surgiram as criaturas que hospedam vida; e da mesma sorte, pela reunião de células num determinado esquema ele dotou o ser humano da capacidade de pensar, segundo afirmam os doutos que julgam saber como é que, um dia, o homem se tornou o ser dominante no nosso planeta. 

      Dizem que essa é a fórmula pela qual Deus faz todas as coisas que existem no mundo e se é, não somos nós que iremos contestar. Até porque ela nos parece muito mais palatável aos nossos sentidos do que crer que ele tirou tudo do nada como se fosse um mágico sacando coelhos da sua cartola. A propósito, nessa fórmula podemos ver alguma lógica porquanto, como já nos referimos algures nesta narrativa, a bula da construção universal está na combinação quântica dos polos positivo e negativo da corrente energética que circula em átomos de diferentes configurações. Por isso, até ele mesmo, que é Deus e não precisa desses expedientes, para dar nascimento ao universo das realidades manifestas, segundo pensam alguns doutos senhores que dizem receber suas informações diretamente dos anjos nessa estranha língua que eles chamam de Cabalá, também precisou gerar para si mesmo uma parte feminina na forma de uma imagem luminosa chamada Schekináh, que se traduz pela Luz que anuncia sua presença no mundo. 

    Sem querer embarcar em peregrinações metafísicas que não teríamos pernas para sustentar, não podemos deixar de reconhecer que elocubrações como essas nos fornecem alimento substancial para a imaginação. Tanto que deram azo a muitos filósofos, a maioria dotada de veia poética, para dizer que Deus é masculino e feminino, menina e menino ao mesmo tempo, desconstruindo aquela imagem patriarcal e viril que dele se faz, de um velho barbudo e austero, com um raio na mão para jogar em cima de quem contrariar a sua vontade. E isso, para nós, que nunca gostamos dessa imagem, não é pouca coisa. Vê-lo, de um lado, como um um campo carregado de uma inesgotável energia e de outro como um inefável facho de luz que dele sai, convenhamos, é muito mais bonito e confortador do que pintá-lo como um irascível ancião sentado nas nuvens, como um voyeur, observando e julgando os nossos atos.

       Agora, ao se admitir que Adão foi criado como um ser andrógino, podemos imaginar que a criação da mulher teria sido feita através de uma espécie de operação semelhante a que se faz hoje para redesignação sexual de um indivíduo transsexual, separando em dois sexos o que estava alojado em um único organismo. Essa nos parece uma explicação bem mais consentânea com a realidade desse fato porquanto até hoje se consente que há no macho uma porção de fêmea, da mesma forma que na fêmea subsiste uma porção de macho, o que causa nestes nossos dias tanta confusão que até os tribunais superiores já foram acionados para opinar sobre a questão. Dessa forma Deus teria extraído do corpo de Adão os hormônios necessários, juntamente com as demais conformidades, para a formação da mulher e implantado, quiçá, numa fêmea de uma espécie primata, da mesma forma que teria feito com o protótipo Adão, formado a partir de um espécime dessa fauna, que já estava numa fase de evolução bastante adiantada.  

 

       E por esse processo teria obtido o protótipo da mulher que nos foi apresentada como nossa mãe original. Tanto pode ser, e não fica difícil admitir que assim tenha sido se não quisermos acreditar que Adão era uma espécie de golém, construído por estranhas mandraquices praticadas por um ser com poderes tão extraordinários.

       Para quem não sabe o que é um golém vamos explicar que se trata de uma espécie de criatura fabricada por artes mágicas, que só os especialistas nessa ciência chamada Cabalá conhecem. Há quem diga que se trata de uma mera lenda, mas também encontramos quem afirme que se trata de uma experiência verdadeira cujos resultados foram vistos e confirmados. Tudo cabe nessas histórias dos princípios, por isso estamos citando essa informação para não deixar pontas desamarradas.

       A teoria que está por trás dessa lenda, ou ciência, como querem os cabalistas, é a crença de que Deus, que no cômputo geral da sua majestade teria cerca de dez bilhões de nomes, na verdade tem apenas uma única graça de batismo, a qual, se corretamente escrita e pronunciada naquela língua que só os anjos sabem falar, confere ao seu conhecedor um poder igual ao dele, ou seja, o de dar vida a qualquer coisa que ele tocar. Com base nessa crença, vários cultores dessa estranha ciência se dedicaram a fazer combinações entre as letras usadas nesse alfabeto para escrever os milhões de nomes pelos quais ele era chamado, porque, segundo acreditavam, em um desses arranjos entre as letras usadas para escrever o nome divino estaria o seu verdadeiro nome. E quem o descobrisse e soubesse pronunciá-lo corretamente adquiria o poder de criar o seu próprio Adão.

     Assim nasceu a lenda, ou a história do golém. E essa prática, de fabricar goléns, se quisermos dar crédito à essas histórias, parece que se tornou uma tradição entre os eruditos do povo que escreveu as crônicas consideradas oficiais, pois vários dos seu sábios tentaram repetir a proeza de Deus ao criar Adão, fazendo também os seus próprios goléns, homúnculos de barro que eram animados por uma palavra dita ao ouvido deles, ora para defender seus guetos de ataques dos inimigos, ora para servir como guarda-costas ou até mesmo como um sicário para eliminar seus inimigos.

      Não estamos duvidando dessa possibilidade, já que Ele, sendo Deus, e Deus tudo pode, poderia ter feito seus dois seres humanos da forma como se diz que foram feitos, misturando num molde o barro da terra com água, cozinhando com o fogo das suas mãos e insuflando-o com ar, como está escrito que ele fez. E se foi assim, tudo bem. Até porque, como já reportamos algures nesta narrativa, essa estratégia encontra confirmação nas especulações de renomados filósofos que dizem que tudo que existe no universo é feito de fogo, terra, água e ar, inclusive nossos corpos. Igualmente, não temos necessidade de saber se Adão foi feito de um jeito ou de outro, o que de resto pouco importa, porquanto o que se cobra mesmo é sempre o resultado.

      Assim, se nesse caso Deus trabalhou como um médico engenheiro geneticista, produzindo um ser por inseminação artificial, ou fez como o rabino Bezalel, de quem se diz ter construído um golém para defender o gueto judeu de Praga contra os antissemitas que ameaçavam destruí-lo, é cediço buscar comprovação que justifique a opção por um ou outro método. Não mudaria o que nós nos tornamos saber se a nossa origem se deu de um jeito ou de outro.

     O que fica dessa proeza é o fato de que seja qual a forma como isso foi feito, deve ter sido uma operação muito cansativa, o que inferimos por conta das que são efetuadas hoje em nossos hospitais e fazem nossos médicos suportarem muito estresse e angústia até ter certeza do resultado. Ou, aceitando-se a hipótese de Adão ter sido produzido pela fórmula do golém, mais estafante ainda, porque nesse caso Criador que naquela altura ainda não tinha nome conhecido, teve que listar todos os possíveis antropônimos pelos quais viria a ser apodado no futuro para escolher aquele que ele adotaria como sendo o verdadeiro. Isso porque, segundo a fórmula para se produzir um golém, é preciso que o verdadeiro nome de Deus seja pronunciado ao ouvido do boneco de barro para que ele adquira vida. E depois de pronunciado esse nome o seu criador deve dar uma tapinha na nuca dele e dizer Emeth, uma cabalística palavra que nessa língua dos anjos significa verdade. E se for para tirar-lhe a vida deve-se apagar da palavra Emeth a sílaba “e”, pronunciando-se a palavra Meth, que significa “morte”. Tudo cabe nessa história, até mesmo a especulação de um renomado escritor que disse sermos todos uma espécie de goléns fabricados pela vontade de Deus.

     Depois disso tudo, durma bem, se puder.

      

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 08/06/2025


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