CAPÍTULO SEIS
Agora que já sabemos a razão de Elohim Deus Pai ter feito Adão, podemos vê-lo se levantando do seu molde, prontinho, na plenitude das suas graças, com sua bela pele de cor adamascada, lisa como um pêssego de boa safra e no todo bonito como um anjo, como de fato se informou que era, porque ele foi feito à imagem e semelhança dos seus angélicos pais. E podemos imaginar como teria sido a cara que ele fez ao se levantar e ver a si mesmo num espelho de água como Narciso teria feito, segundo diziam os gregos, como uma criatura tão diferente daquelas que pareciam ser da sua espécie, seres peludos e de aparência assustadora, que andavam meio encurvados, ora usando só as pernas, ora usando pernas e mãos e eram desprovidos da capacidade de articular palavras, porque só conseguiam emitir uns grunhidos ininteligíveis.
Assim se diz que Elohim Deus Pai fez o homem e se essa narrativa viralizou tanto que se tornou uma crença consagrada, nós temos que no mínimo respeitá-la como possibilidade a ser admitida.
Até porque, sendo quem era, o Senhor Supremo do Universo, ele tinha poderes para fazer o homem Adão do jeito que se diz que foi feito. Tudo pode ser. Mas nós, que não somos fundamentalistas nem hospedamos vermes de radicalismo em nossas visões do mundo, temos que dar largo a todas as velas que se abriram no mar dessa insanidade que se tornou essa história das origens do ser humano.
Isso dizemos por que há quem diga que a criação do homem
não aconteceu da forma como foi escrito no livro consagrado, mas sim através de uma operação cirúrgica bem menos insólita do que essa que foi admitida nas crônicas oficiais. O nosso papai Adão, segundo alternativas fontes que consultamos, na verdade seria o resultado de uma experiência realizada por seres extraterrestres que por aqui aportaram há cerca de cem mil anos atrás e deram início à raça humana praticando operações de mutação genética em espécies semelhantes ao homem, mas ainda não tão evoluídas para serem consideradas humanas.
Claro está que os autores dessa informação podem estar falando do mesmo episódio que inspirou a crônica oficial desse evento, ou seja, a saga dos Elhoins rebeldes que foram para cá deportados e ao aqui chegarem iniciaram uma colônia de seres híbridos, meio humanos, meio animais, conhecidos como nefilins, cuja existência foi inclusive registrada nas ditas crônicas. Esse episódio encontra confirmação nos registros já citados, feitos por essa civilização em tabuinhas de argila que podem, ainda hoje, serem lidas em nossos museus; e se duas ou mais fontes confirmam um episódio, há que se, no mínimo, admitir-se que possa ser um fato. Estão aí para provar isso os chamados Evangelhos Canônicos, que são quatro tidos como verdadeiros e mais uma centena de outros a contar a mesma história, embora línguas maledicentes digam que todos não passam de metalinguagens desenvolvidas a partir de um mito existente no inconsciente coletivo da humanidade, como as façanhas de Hércules ou as proezas de Robin Hood.
Essa notícia, de que o homem é resultado de engenharia ge-
nética praticada por seres extraterrestres não saiu do nosso bestunto. Ela está registrada nas já referidas tabuinhas de argila que podem ser lidas ainda hoje em vários museus da terra, que dão como verossímeis as assertivas de que na aurora da nossa civilização as criaturas humanas eram geradas dessa forma. Assim teriam sido produzidos os primeiros seres humanos que as crônicas oficiais sugerem terem sido antecessores do nosso papai Adão, e ao que parece, já estavam aqui antes da sua geração.
Se levarmos em conta que toda a história humana é apócrifa, não custa admitir a possibilidade de que o casal humano tenha sido obtido a partir de uma operação bem menos taumatúrgica do que aquela que o referendado conto da criação fala. Pois que, segundo essas fontes, o que Elohim Deus Pai fez para criar Adão foi uma operação de mutação genética chamada na língua suméria shipubel inti. Esta é uma espécie de cirurgia que está registrada na literatura daquele povo nos citados caderninhos de barro que foram preservados na biblioteca que um antigo rei assírio chamado Assurbanipal montou a cerca de três mil anos atrás, para desconsolo dos nossos modernos bibliotecários que pensam que a sua arte é coisa moderna.
Ao explorarmos um pouco mais o conteúdo dessa biblioteca ficamos sabendo que a palavra Elohim, na língua suméria, se grava annunakis, e este é um termo que serve tanto para designar
a divindade na singularidade da sua magnificência quanto na plu-
ralidade das suas múltiplas personalidades. Simplificando, o ter-
mo Elohim seria o nome dado a um grupo de deuses-astronautas que vieram à terra para iniciar aqui uma colônia. E em aqui chegando esses galácticos visitantes pegaram um macho de uma espécie de hominídeos já bastante avançada em sua evolução biológica e nele fizeram uma operação de mutação genética. Misturando os genes desse, que os acadêmicos chamam de homo erectus, com os genes de um ser da sua própria espécie, obteve-se como resultado o que os nossos acadêmicos chamam de homo sapiens. Daí se dizer que o homem é um ser intermediário entre um anjo e um ser humano, um misto de profano com sagrado, uma criatura vivendo entre o céu e a terra, sem saber a que mundo de fato pertence.
Tudo pode ser. Afinal, não precisamos ver Deus praticando mandraquices, o que seria se ele simplesmente transformasse bonecos de barro em pessoas humanas. Isso é o que faziam alguns antigos mestres cabalistas, que segundo acreditadas fontes rabínicas, davam vida a criaturas feitas de barro, chamadas goléns. Mas de um Ser tão poderoso como Elohim Deus Pai podemos esperar coisas mais elaboradas e críveis do que passes de mágica e misteriosas prestidigitações. Por vias bem mais processuais, lógicas e verossímeis, que hoje até mesmo os homens de ciência já conseguem realizar, ele bem que poderia ter exercido suas habilidades de engenheiro genético e fazer uma operação dessas sem provocar nenhuma perplexidade nos nossos apóstolos da racionalidade, que não conseguem aceitar o fato de que Adão tenha sido criado como uma espécie de golém.
E bem pode ser que foi isso que ele tenha feito, o que justi-
ficaria todas as teorias que se levantaram a respeito desse ainda espesso mistério que é a origem do homem e a sua evolução, até transformar-se nesse caniço pensante que ele é, como o definiu um renomado filósofo. Pois que antes de sermos o que somos já fomos algo diferente parece que está provado pelas pesquisas acadêmicas que dão conta da existência de muitas etapas anteriores na saga do homem sobre a terra. Não temos necessidade de crer em uma narrativa mais do que em outras, mas causa-nos espécie que o protótipo do homem figurado pelo nosso papai Adão tivesse nascido em um determinado lugar do planeta e não em outro. E que certo grupo humano tenha sido escolhido para evoluir e outros não, de forma que até hoje ainda encontraremos em muitos lugares da terra pessoas tão inocentes e sem conhecimento do bem e do mal como se diz que era o casal humano antes do propalado episódio que ocasionou a queda do homem em razão da comilança do tal fruto do conhecimento.
Sem dúvida fica mais fácil para a nossa cabeça ver o nosso papai Adão levantando-se, ainda meio tonto pela anestesia, de uma mesa de cirurgia, rodeado pelos seres que lhe deram origem (agora que sabemos que o nome Elohim também pode designar uma coletividade de seres de origem extraterrestre). Talvez seja por isso que a própria crônica oficial desse evento dá conta que os autores dessa proeza, ao confabularem para fazer a dita operação, disseram: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, assim mesmo, no plural, o que mostra que essa proeza não foi realizada por uma pessoa só, se é que podemos chamar Deus, ou os nossos angélicos mestres Elohins de pessoas.
Destarte, a não ser que se considere como um recurso gra -
matical do redator desse episódio, que por suposto teria recorrido ao uso pronominal de pluralidade para dar estilo à sua redação, temos que dar por certo que Elohim Deus Pai teve companhia nessa operação, porque no mesmo registro vamos encontrá-lo dizendo coisas tais como “Eis que o homem se tornou um de nós”, o que faz supor que ele não estava só nessa empreitada. E a não ser que se compute a ele a tolice de falar sozinho, que é coisa de doidos e isso não se pode dizer de alguém como ele, o que fica dessa informação é que o homem, seja qual for a forma pela qual tenha sido feito, não foi obra de uma entidade só. E com isso pode-se dizer também, para pôr mais molho nessa salada, que se a espécie humana resultou de uma evolução que passa por uma geração de primatas, resultando no tal de homo erectus, o homo sapiens, como produto mais elaborado da espécie, bem pode ter sido uma criação dos deuses, independente de quem eles tenham sido na realidade.
Assim resolvemos também, de uma vez por todas, essa dúvida medonha que o tal de Darwin e seus seguidores colocaram nas nossas cabeças com a suas heréticas teses que afirmam ser o homem nada além de um macaco mais evoluído. De um primata fez-se o homem, o que quer dizer que o tal barro da terra em que o nosso papai Adão foi moldado era uma criatura já bastante crescidinha e encaminhada por vias de evolução natural. Com isso não se tira de Elohim Deus Pai o mérito de ter feito o homem da forma como se disse que ele fez e agrega-se à esse fato a hipótese de quem defende a tese evolucionista.
Dessa feita fica aqui registrada a nossa contribuição para a
solução dessa polêmica e deixamos também, desde já, liberado
para domínio público o uso dessa fórmula para qualquer debate que se trave sobre esse assunto. E desapegados que somos de qualquer vaidade ou ambição, nem fazemos questão de sermos citados como fonte dessa intuição porque o que queremos não é sentar cátedra, mas apenas contribuir com mais uma estrofe para esse verdadeiro samba de crioulo doido que é a história da criação da raça humana.
Depois, o que parece confirmar ainda mais essa nossa dedução, acontece de encontramos nas crônicas oficiais o informe de que esse nosso pretenso primeiro ancestral deveria constituir algo diferente dos seres que já existiam na terra entre as criaturas viventes, que nem nomes para identificá-los tinha ainda. Tanto é que Elohim Deus Pai logo lhe delegou a tarefa de nomeá-las para que elas pudessem ser distinguidas umas das outras. E dessa incumbência que lhe deu o Criador nasceu essa regra de organização do pensamento que os acadêmicos chamam de princípio da identidade, que diz que uma coisa tem que ser uma coisa e outra coisa precisa ser outra coisa, que se tornou uma utilíssima estratégia usada pela nossa cabeça para evitar que façamos mais confusão do que as que já fazemos normalmente. Porque foi assim que um cavalo se tornou um cavalo, um cão um cão, uma galinha uma galinha, um sapo um sapo e todas as identidades se estabeleceram no mundo para que a “ordo ab caos” se realizasse também entre o rol das criaturas e não apenas em relação ao conjunto da materialidade manifesta.
Agora, que o homem Adão era um protótipo, sabemos por -
que a própria crônica oficial desse fato nos dá conta que ele foi
feito em cópia única, que não tinha parentesco com qualquer outra criatura que havia na terra, nem usufruía da prerrogativa dada por Elohim Deus Pai aos outros seres viventes, que era o fato de serem macho e fêmea, com organismos propícios para se unirem e produzirem crias à sua imagem e semelhança.
Daí se dizer que Adão foi criado como um ser andrógeno, porque está escrito que macho e fêmea o Senhor o criou, o que se infere que ele tinha em seu organismo as propriedades de ambos os sexos. Isso consta, inclusive, das crônicas oficiais que dão conta de que todas as espécies criadas tinham a sua cara metade, mas ele não. O que quer dizer que todo macho tinha uma fêmea com quem podia se acasalar, menos ele, o que não deve ter sido uma descoberta desagradável para o recém-criado homo sapiens, que via todos os animais gerando suas crias com prazer e ele só olhando.
Não se pode colocar essa, que poderíamos chamar de falha genética, no protótipo elaborado pelo Criador por conta de um erro de projeto porquanto estamos falando de Deus e ele é infenso a erros. Diríamos que talvez ele tenha esquecido do próprio propósito que o levou a querer construir o universo para que nele pudesse espelhar a sua majestade. Esse propósito, como sabemos, era a necessária existência de uma consciência que pudesse detectar a sua existência como uma presença real e poderosa, algo assim como uma nação de súditos que reconhecesse a sua magnificência, o seu poder e o seu direito à governança do mundo. Pois, como vimos, foi em razão dessa necessidade que ele fez o mundo e nele pôs uma criatura com a qualia necessária para dele tomar conhecimento e venerá-lo como seu Criador.
Do romance "A FORMA DO HOMEM"- CLUBE DOS LEITORES, 2025